Filosofia

1. O CONHECIMENTO MÍTICO

O CONHECIMENTO MÍTICO
O que define o mito é fato de ser um sistema de comunicação, uma fala, uma narrativa, uma intuição compreensiva de uma realidade que transcende os poderes de um discurso argumentativo ou demonstrativo.. Diante da infinita grandeza e mistério dos fenômenos naturais (sol, chuva, trovão, raio, etc.) e diante das situações limite, representadas pelos mistérios da doença e da morte, o ser humano encontra-se perplexo. E em decorrência desse estado de espanto, mergulhado no mistério, o ser humano recorre à narrativa mítica, recebida e alimentada por uma tradição comunitária.
Nas Palavras de Roland Barthes: “ O mito é um sistema de comunicação, é uma mensagem. Eis por que não poderia ser um objeto, um conceito, ou uma ideia: ele é um modo de significação, uma forma [...] já que o mito é uma fala, tudo pode constituir um mito, desde que seja suscetível de ser julgado por um discurso. O mito não se define pelo objeto de sua mensagem, mas pela maneira como a profere: o mito tem limites formais, mas não substanciais”.
(BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. Rita Buongermino, Pedro de Souza. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. p.131)

Dessa forma, a primeira observação refere-se não ao conteúdo específico do mito, mas à sua forma. O importante aqui é perceber que a linguagem mítica situa-se em um plano diferente da razão argumentativa, conforme o texto a seguir, de Nicola Abbagnano: “O mito é uma forma autônoma de pensamento e de vida. Nesse sentido, a validade e a função do mito não são secundárias e subordinadas em relação ao conhecimento racional, mas originárias e primárias, situando-se num plano diferente do plano do intelecto, porém dotado de igual dignidade. [...].Portanto, a verdade do mito não é uma verdade intelectual corrompida ou degenerada, mas uma verdade autêntica, embora com forma diferente da verdade intelectual, com forma fantástica ou poética: “Os caracteres poéticos nos quais consiste a essência das fábulas nasceram, por necessidade natural, da incapacidade de extrair as formas e as propriedades dos fatos”. (Vico). (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. de Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p.785)

Na narrativa mítica, a origem de todas as coisas é atribuída à força dos deuses ou à forças sobrenaturais. Dessa forma, a narrativa mítica apazigua o espírito inquieto. Sendo a primeira forma de consciência do ser humano, a consciência mítica começa a ordenar e organizar o mundo. Assim, a formação dos mitos obedece a uma necessidade inerente do ser humano e da cultura, considerando os limites da razão e dada a essencial incompletude de nossa condição humana, também afetada pela dinâmica das emoções, da afetividade e das crenças. Ou seja, nós não somos somente seres racionais. Nossa primeira natureza é também impulsiva, emocional, necessitada de segurança. E será da nossa dimensão emotiva e intuitiva que nascerá a narrativa mítica.

No fragmento a seguir Nicola Abbagnano recorre ao pensamento de Lévi-Strauss (1908-2009), um dos mais consagrados antropólogos a refletir sobre a questão dos mitos, para evidenciar que a narrativa mítica não é uma narrativa que reproduz uma situação real: “Lévi-Strauss mostrou que o mito não é uma narrativa histórica, mas a representação generalizada de fatos que recorrem com uniformidade na vida dos homens: nascimento e morte, luta contra a fome e as forças da natureza, derrota e vitória, relacionamento entre os sexos. Por isso, o mito nunca reproduz a situação real, mas opõe-se a ela, no sentido de que a representação é embelezada, corrigida e aperfeiçoada, expressando assim as aspirações a que a situação real dá origem”. (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p.786)

Vimos que o mito é uma intuição compreensiva da realidade, uma forma espontânea de situar-nos no mundo, expressando a capacidade inicial de compreendê-lo. Por isso, as raízes do mito estão não na razão, mas na realidade vivida, pré-reflexiva, das emoções e da afetividade. Apoiados em imagens e fortalecidos pelo afeto, explicamos a realidade concreta, conferindo significado e ordem a um mundo aparentemente caótico e desorganizado. Sendo narrativa pronunciada para ouvintes que a recebem como verdadeira, o mito traz a marca da fé e da confiança. Assim, a verdade do mito está relacionada à confiança na pessoa do narrador, à sua autoridade. Acredita-se que o poeta narrador seja um escolhido dos deuses, iluminado pelos deuses que lhe inspiraram sobre as origens dos acontecimentos passados e lhe passaram a responsabilidade de transmitir essa verdade para as gerações presentes e futuras. Sua palavra é sagrada, porque vem de uma revelação divina. Dessa forma, o mito se apresenta incontestável, inquestionável; marcado pela ausência da percepção de contradições.

Os mitos são transmitidos de geração em geração, “por que assim os ancestrais o prescreveram”. Com isso, os mitos cumprem uma importante função social, ao reforçarem a coesão social, alimentando a identidade de grupo, a identidade comunitária. Enquanto o mito mantiver a força de identificação dos indivíduos e da comunidade, ele permanecerá muito vivo. Nessa pintura de Henri Matisse, vemos o ritual da dança, que atualiza a memória mítica. Essas narrativas míticas fazem parte da tradição cultural de um povo. Por isso, não são produto de um autor específico, de um indivíduo isolado que, em determinado momento, sentou-se e as escreveu. Homero é conhecido como o autor da Ilíada e Odisseia, por volta do século IX a.C. A Hesíodo é atribuída a Teogonia, do século VIII a.C

Mircea Eliade (1907-1986), filósofo romeno, um dos maiores historiadores das religiões e estudiosos dos mitos, expressa a complexidade da linguagem mítica: “O mito relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio. Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a sobrenaturalidade) de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas e, algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do sobrenatural) no mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o mundo e o converte no que é hoje. (ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. 4 ed. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 1994. p.11).

Os mitos antigos ou primordiais exerciam uma função não só de explicar o mundo e as relações humanas, mas de transmitir um ideal de educação, essencial para a formação dos jovens. Por meio das narrativas míticas, as gerações mais velhas ensinavam às gerações mais novas como deveriam ser para se tornarem “excelentes”. Os heróis e deuses transmitiam modelos exemplares de conduta para serem seguidos. Esse modelo estava presente na areté (virtude) de cada herói.
Como uma narrativa das origens, o mito é uma genealogia, isto é, narrativa da geração dos seres, das coisas, das qualidades, por outros seres, que são seus pais ou antepassados. São cosmogonias e teogonias. Gonos é uma palavra grega que significa geração, nascimento, parto; e cosmo significa o mundo natural, regido por uma ordem. Por isso, cosmogonia é a narrativa sobre o nascimento e a organização do mundo, a partir de forças geradoras divinas. Teogonia é a narrativa da origem dos deuses, a partir de seus pais e antepassados.

A narrativa mítica alimenta e cultiva capacidade imaginativa do ser humano. E, alimentando a imaginação, o ser humano despertará para a abstração, para a inferência. Aqui se localiza a origem existencial da filosofia. Com a consciência filosófica, as grandes questões da vida recebem um novo olhar, de perspectiva racional. Contudo, não falamos em ruptura entre mito e filosofia. Falamos em passagem, em mudança de perspectiva. Para George Gusdorf, “o mito propõe todos os valores, puros e impuros. Não é da sua atribuição autorizar tudo o que sugere. [...] O mito propõe, mas cabe à consciência dispor”. (GUSDORF, GEORGE. Mito e metafísica. Trad. Hugo di Prímio Paz.São Paulo: Convívio, 1979, p. 308. )
Fazendo um confronto entre mito e logos, Pierre Grima, afirma: “O mito se opõe ao logos como a fantasia à razão, como a palavra que narra à palavra que demonstra. Logos e mito são duas metades da linguagem, duas funções igualmente fundamentais da vida do espírito. O logos, sendo uma argumentação, pretende convencer. Mas o mito tem por finalidade apenas a si mesmo. Acredita-se ou não nele, conforme a própria vontade, mediante ato de fé, caso pareça “belo” ou verossímil, ou simplesmente porque se quer acreditar. O mito, assim, atrai em torno de si toda a parcela do irracional existente no pensamento humano; por sua própria natureza, é aparentado à arte, em todas as suas criações”
GRIMAL,Pierre. A mitologia grega. 3ª ed. Tradução Carlos Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1982.p. 8-9.

Estabelecendo um paralelo entre mito e filosofia, podemos afirmar, inicialmente, que o mito, enquanto intuição compreensiva da realidade, narra as coisas como eram num passado imemorial e longínquo. Em contrapartida, a filosofia se volta aos fundamentos racionais de as coisas serem como são, na totalidade no tempo. Em segundo lugar, o mito primitivo narra a origem através de genealogias e rivalidades ou alianças entre forças divinas e personalizadas, enquanto a filosofia explica a produção das realidades por elementos e causas naturais e impessoais. Em terceiro lugar, o mito traz a ausência da percepção das contradições, devido à fé-confiança depositada na figura do poeta narrador. Em contrapartida, a filosofia, deslocando o recurso da autoridade pessoal para o argumento racional, busca uma explicação coerente, racionalmente bem fundamentada, evitando as contradições

Celito Meier

2. A CONSCIÊNCIA FILOSÓFICA

Quando alguém pergunta sobre a necessidade e a utilidade de estudar filosofia, está buscando pelo sentido e pelo fundamento de algo. Essa postura é filosófica, pois é atitude investigativa dos fundamentos. Filosofar, portanto, é problematizar, é buscar metódica e disciplinadamente os princípios, os pressupostos que fundamentam as diferentes posturas diante de questões centrais da vida, em todos os campos do saber.

Trabalhamos aqui com dois sentidos básicos de filosofia. Inicialmente, em momento de negatividade, como atitude problematizadora, de crítica, de desmascaramento. Em seguida, em momento de positividade, como busca dos fundamentos, em sua preocupação de integrar diferentes olhares, partindo do pressuposto do que a sabedoria buscada transcende as visões particulares.

Em suma, vamos trabalhar com a ideia de que a filosofia é um campo do saber que tem uma especificidade, características próprias, objetivos e metodologias específicas. Contudo, trabalharemos também com a concepção de que a filosofia é uma determinada atitude, uma postura, uma forma de ver e ler o mundo e a própria vida

Em sua obra O Banquete, Platão (427-347a.C.) identifica o amor como movimento em direção ao belo. Dessa forma, a carência ou a falta, jamais a posse caracteriza o amor. Assim, a filosofia, sendo o amor à sabedoria, está marcada pela consciência da falta, razão pela qual se explica o seu desejo e a sua busca pela sabedoria, que jamais alcançará em sua plenitude, por não ser nenhum deus. Nas palavras de Platão:”

O Amor [...] está no meio da sabedoria e da ignorância. Eis com efeito o que se dá. Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio, pois já é, assim como se alguém mais é sábio, não filosofa. Nem também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que está o difícil da ignorância, no pensar, quem não é um homem distinto e gentil, nem inteligente, que lhe basta assim. Não deseja portanto quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso. Quais então [...] os que filosofam, se não são nem os sábios, nem os ignorantes? [...] São os que estão entre esses dois extremos, e um deles seria o Amor. Com efeito, uma das coisas mais belas é a sabedoria, e o Amor é amor pelo belo, de modo que é forçoso o Amor ser filósofo e, sendo filósofo, estar entre o sábio e o ignorante.

(PLATÃO. O Banquete. Trad. José Cavalcante de Souza. 5.ed. São Paulo: Nova cultural, 1991. p.35-36).

A partir disso, ao nos perguntarmos sobre a identidade da filosofia, deveremos pensar na própria realização do ser humano, em sua condição de ser pensante. Sobre a identidade da filosofia, Karl Jaspers assim se expressa: “Todo aquele que se dedica à filosofia quer viver para a verdade. Vá para onde for, aconteça-lhe o que acontecer [...] está sempre interrogando. É possível certa confiança, mas não a certeza [...]. A Filosofia se expõe a abismos diante dos quais não deve fechar os olhos, assim como não pode esperar que desapareçam por encanto”. (JASPERS, Karl. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Cultrix, 1993. p. 138-147).

O fragmento a seguir, de Fernando Savater, esclarece algumas dimensões singulares da consciência filosófica: “A Filosofia não é a revelação feita ao ignorante por quem sabe tudo, mas o diálogo entre iguais que se fazem cúmplices em sua mútua submissão à força da razão e não à razão da força”. (SAVATER, Fernando. As perguntas da vida. Tradução de Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 02).

O texto que segue foi escrito em parceria entre o filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995) e o Filósofo e militante político francês Félix Guattari (1930-1992). Nesse trecho, os autores discorrem sobre a importância do caos para a filosofia, a ciência e arte, na contramão do desejo de segurança inerente aos seres humanos:

“Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos. Nada é mais doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa a si mesmo, ideias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos [...] Perdemos cem cessar nossas ideias. É por isso que queremos agarrar-nos a opiniões prontas [como um “guarda-sol” que nos protege do caos. [...] Mas a Arte, a Ciência e a Filosofia exigem mais: traçam planos sobre o caos. Essas três disciplinas não são como as religiões, que invocam dinastias de deuses, ou a epifania [manifestação] de um Deus único, para pintar sobre o guarda-sol um firmamento, como as figuras de uma Urdoxa [crença originária, certeza da crença] de onde derivariam nossas opiniões. A Filosofia, a ciência e a arte querem que rasguemos o firmamento e que mergulhemos no caos. Só o venceremos a este preço”.
(DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é Filosofia? Trad. Bento Prado Junior e Alberto Alonso Munoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. p. 259-261).

A filosofia não está no horizonte mítico, da revelação. Ao contrário, a filosofia traz a marca da dialética, do diálogo entre diferentes pontos de vista. Na medida em que diferentes pessoas, com diferentes projetos se relacionam e passam a conviver em um mesmo espaço, haverá o conflito. Esse conflito se manifestará nas diferentes interpretações, nos diferentes desejos e interesses. E a postura filosófica se faz fundamental porque ela nos ensina a dar as razões de nosso olhar e a reconhecer as razões do olhar do outro. A partir dessa habilidade, característica do diálogo, alimentaremos a sociabilidade e a democracia nas relações humanas, aprenderemos a cultivar os valores da vida em sociedade e a praticar a cidadania, que passa pela aceitação, defesa e promoção das diferenças.

Celito Meier

3. FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS

Os filósofos pré-socráticos constituíram uma tradição filosófica que depois se perdeu. Todas as obras dos pré-socráticos foram perdidas. Restam alguns fragmentos que nos chegaram por diferentes caminhos, principalmente através das citações feitas por filósofos posteriores, principalmente Platão, Aristóteles, os Estóicos, Sexto empírico, Cícero e os Neoplatônicos. Assim, é possível resgatar alguns dos traços essenciais dessa tradição, que muito tem a nos dizer, a nós que nos encontramos em uma crescente sensibilidade ecológica, cósmica.

Ao falarmos em filosofia pré-socrática, estamos nos referindo aos filósofos da natureza, conhecidos como físicos (physis, natureza). Esses primeiros filósofos foram denominados por Aristóteles de physiólogos, o que vem a significar estudiosos da natureza. Desta forma, o mundo natural (physis) passa a ser o objeto de estudo desses primeiros filósofos, que inauguram entre nós a ciência.

A mudança fundamental de olhar está agora no foco natural e não no sobrenatural. Busca-se as explicações e as causas dos fenômenos naturais, na própria realidade natural e não mais no horizonte mítico.

O período pré-socrático começa no século VI a.C., e termina dois séculos depois, nos fins do século V; surge e floresce fora da Grécia propriamente dita, nas prósperas colônias gregas da Ásia Menor, do Egeu (Jônia) e da Itália meridional, da Sicília, favorecido pelas liberdades democráticas e pelo bem-estar econômico.

A preocupação central dos filósofos deste período refere-se aos problemas cosmológicos, nos quais a tônica que unifica esse pensamento é estudar o mundo exterior nos elementos que o constituem, na sua origem e nas contínuas mudanças a que está sujeito.

A PHYSIS E A CAUSALIDADE: O ELEMENTO PRIMORDIAL

Para os pensadores pré-socráticos, o foco da busca era entender a origem de todas as coisas, o arché, o princípio que está na origem de uma realidade. Para os primeiros filósofos, existe um nexo causal natural entre as coisas; eles buscam a relação entre causa e efeito. Por isso, Aristóteles os define como naturalistas ou filósofos da natureza.

O LOGOS E O COSMOS

Nossos primeiros filósofos fizeram, simultaneamente, duas grandes mudanças em relação ao passado. Em primeiro lugar, tentaram entender o mundo com o uso da razão, sem recorrer à revelação, à religião, ou ainda à autoridade e à tradição. E, em segundo lugar, estimulavam as pessoas à atitude de pensar, servindo-se de sua própria razão.

Os primeiros filósofos, sendo naturalistas ou physiólogos, buscam o logos. Buscar o logos é buscar o princípio de inteligibilidade, a racionalidade que move o mundo. Aqui se pressupõe que haja uma ordem e uma harmonia no mundo. O cosmo é o mundo natural regido por uma ordem, por princípios racionais inteligíveis, nos quais se percebe uma ordem hierárquica, em que alguns princípios estão na base. A falta de ordem e de organização da matéria é conhecida pela expressão caos.

Nesse contexto, é importante perceber um pressuposto de fundo. Para que o mundo possa ser conhecido pela razão é preciso que haja princípios racionalmente inteligíveis. Assim, pode-se fazer ciência, tentar explicar teoricamente o cosmo. Daí resulta a expressão “cosmologia”, reflexão, estudo e explicação dos processos naturais e do funcionamento do universo.

AS DIVERSAS ESCOLAS PRÉ-SOCRATICAS

Em conformidade com a abordagem realizada, e com o modo de resolver as questões que surgem, classificam-se os filósofos que floresceram nesse período em quatro escolas: Escola Jônica; Escola Itálica; Escola Eleática; Escola Atomística.

A Escola Jônica recebe esse nome por ter florescido nas colônias jônicas da Ásia Menor. É a primeira escola do período naturalista, na qual os seus expoentes estão preocupados em achar a substância única, a causa, o princípio do mundo natural variado, múltiplo e mutável. Para os jônicos, o princípio (arché) das coisas deve estar em uma matéria única, na qual deve estar a força ativa, de cuja ação derivariam precisamente a variedade, a multiplicidade, a sucessão dos fenômenos na matéria una.

Essa escola floresceu precisamente em Mileto, colônia grega do litoral da Ásia Menor, durante todo o século VI, até a destruição da cidade pelos persas no ano de 494 a.C. Entre os jônios, encontramos os antigos e os posteriores. Os antigos consideram o Universo do ponto de vista estático, procurando determinar o elemento primordial, a matéria primitiva de que são compostos todos os seres. Os mais conhecidos são: Tales de Mileto, Anaximandro de Mileto, Anaxímenes de Mileto. Os jônios posteriores imprimem outra orientação aos estudos cosmológicos, encarando o universo no seu aspecto dinâmico, e procurando resolver o problema do movimento e da transformação dos corpos. Os mais conhecidos são Heráclito de Éfeso, Empédocles de Agrigento, Anaxágoras de Clazômenas.

TALES E O PRINCÍPIO ÁGUA

De acordo com Aristóteles (metafísica, I, 983 b 20), Tales de Mileto (+ - 624 a.C a 548 a.C) foi o fundador da Filosofia dos “físicos”, que tinha como centro de preocupação a investigação sobre os fundamentos naturais e não mais as especulações teológicas e sobrenaturais, típicas de uma mentalidade mítica.
Tales sustentava ser a água o princípio (arché) de todas as coisas. A água, ao se resfriar, torna-se densa e dá origem à terra; ao se aquecer transforma-se em vapor e ar, que retornam como chuva quando novamente esfriados. A partir da observação desses três estados em que vemos os corpos na natureza, ou seja, líquido, sólido e gasoso, Tales é levado a concluir que a água pode se transformar ilimitadamente. Desse ciclo de seu movimento (vapor, chuva, rio, mar, terra) nascem as diversas formas de vida, tanto vegetais quanto animais. Tales teve como discípulo Anaximandro.

ANAXIMANDRO E O PRINCÍPIO INDETERMINADO E ILIMITADO

Anaximandro de Mileto, (611-547 a.C.), discípulo e sucessor de Tales, é considerado geógrafo, matemático, astrônomo e político. É atribuída a Anaximandro a autoria do tratado Acerca da Natureza, no qual estabelece como princípio (arché) um elemento indefinido, conhecido como ápeiron (ilimitado), isto é, quantitativamente infinito e qualitativamente indeterminado, em movimento perpétuo.

O ápeiron é um princípio abstrato, dotado de vida e imortalidade, que não está diretamente associado a nenhum elemento palpável da natureza. Desse ilimitado, por um processo de separação ou "segregação" derivam os diferentes corpos. Superando a visão de Tales, Anaximandro caminha na direção da independência desse "princípio" em relação às coisas particulares. A terra, por exemplo, é concebida como um disco suspenso no ar. O eterno e ilimitado, o ápeiron, está em constante movimento, e disso resulta uma série de pares opostos - água e fogo, frio e calor, etc. - que constituem o mundo. Em virtude desse princípio, do caos evolui a ordem do mundo.
Anaxímenes e o princípio ar

Da vida de Anaxímenes (588-524 a.C.) pouco se sabe, além de ser discípulo e amigo de Anaximandro. Diferentemente do princípio palpável de Tales (a água) e do princípio abstrato de Anaximandro (o indeterminado), estabelece o ar como princípio que tudo comanda, substância determinada. Tudo provém do ar, que é respiração e vida. O ar é o princípio (arché) na medida em que torna vivo o mundo, mantendo-lhe unido e sendo, assim, sua alma. Nossa alma, como todas as coisas, é ar. O fogo é o ar rarefeito; a água, a terra, a pedra são formas progressivamente mais condensadas do ar. Dessa forma, as diversas coisas que existem, mesmo que qualitativamente diferentes entre si, não passam de variações quantitativas (mais raro, mais denso) desse único elemento.

9. ESCOLAS HELENÍSTICAS: O CULTIVO DA VIDA INTERIOR

AS ESCOLAS HELENÍSTICAS: O CULTIVO DA VIDA INTERIOR

INTRODUÇÃO. A passagem da era clássica para a era helenística

Na história, registramos certas revoluções na visão de mundo que marcaram decisivamente o espírito humano. A grande expedição de Alexandre Magno (334-323 a.C) foi um desses eventos históricos, que se transformaram em uma verdadeira revolução no espírito do mundo grego.
As conquistas de Alexandre Magno ocasionaram a destruição do antigo e consagrado contexto vital da cidade-Estado, da Pólis grega e fez também desmoronar um pensamento muito hegemônico, até então. Nasce a cosmópolis, a cidade universal. E com ela nasce uma nova Filosofia, uma nova maneira de se relacionar consigo, com o tempo, com os outros.

O período helenístico situou-se entre a morte de Alexandre Magno, que aconteceu em 323 a.C e a conquista pelos romanos do Antigo Egito, em 30 a.C. Nesse período a cultura grega se difundiu por todos os territórios conquistados por Alexandre. É nessa transição entre Apogeu grego e apogeu romano que si situou o período helenístico.

Filosoficamente, a mudança de pensamento foi radical. Não há mais o espaço da pólis, da discussão politica entre os homens livres, na praça. O novo contexto cosmopolita, da cidade universal, reune gregos e bárbaros na mesma condição de súditos. As decisões não são mais tomadas na praça pública, em meio às discussões, mas, no império, bem longe do cotidiano da vida das pessoas.
Longe do centro das decisões politicas e delas ausente, o pensamento filosófico, nesse perído helenístico, volta-se mais uma vez para as questoes morais e para o problema da felicidade, assim com há havia ocorrido na passagem do naturalismo para o humanismo grego, especialmente com o pensamento de Sócrates. Na retomada de questões focadas na interioridade da alma humana, da angústia da existência, e do mistério do mal e da morte, as escolas helenisticas servem-se da filosofia como instrumento de conforto e orientação moral.
Nesse contexto, nasce um acentuado individualismo, no qual as preocupações centrais giram em torno da vida privada do indivíduo. A filosofia torna-se uma tentativa de responder às angústias do indivíduo, em proporcionar à pessoa orientações para a sua salvação interior, para a busca da paz, da ataraxia, ou seja, da ausência de perturbações. Este será o espírito das grandes Filosofias da idade helenística: epicurismo, estoicismo, ceticismo

Veremos, na sequencia, uma síntese das principais escolas helenísticas.

6. SOCRÁTES: A BUSCA DIALÉTICA DA VERDADE

Certo dia, Sócrates (470/469-399 a.C), indo ao templo ou santuário de Apolo, em Delfos, viu no frontispício do templo a seguinte expressão: "Conhece-te a ti mesmo". Ele fará de tal máxima e imperativo a chave-mestra de seu pensamento, a base de toda a sua reflexão filosófica que, daí por diante, passou a ser centrada no homem e não mais no cosmo. Desde então, ele deu início à sua missão de purificar os espíritos, de discernir as realidades.

Recordando a trajetória de Sócrates, sua busca e sua inquietude estavam voltadas para a descoberta da verdade, na construção do pensamento conceitual. Nessa busca, ele fazia menção à profissão de seus pais. A exemplo de sua mãe, parteira, e de seu pai, escultor, ele se dizia "parteiro do conhecimento" e esculpia a pedra bruta do conhecer humano, para fazer vir à tona aquilo que as pessoas já conheciam, mas não sabiam, do qual não tinham consciência. Por essa razão, seu método foi denominado de maiêutica (em grego, "parto"). E Sócrates fazia questão de salientar que, se sua mãe fazia parto de corpos, ele ajudava no processo de parir novas ideias, que ao virem à luz, mereciam, ainda, todo o cuidado da lapidação.

A maiêutica começa pela parte considerada destrutiva, que envolve um método refutativo (chamado elêntico). O método refutativo visa, através de uma sucessão de perguntas, levar o interlocutor a reconhecer sua ignorância sobre o assunto em questão. Tal como aparece nos primeiros diálogos platônicos, Sócrates se mostrava amigo do interlocutor, revelava-se admirador de sua capacidade e de seus méritos e lhe pedia conselhos e ensinamentos. Nas discussões, iniciava com a confissão de nada saber, diante do oponente que se dizia conhecedor de determinado assunto. Por meio de perguntas e problematizações desconstruía as certezas que, até então, interlocutor julgava saber. Nada mais restava ao interlocutor, senão confessar a própria ignorância.

Essa primeira fase da maiêutica estava a serviço da destruição de preconceitos, pois é preciso limpar o terreno para poder construir. Por meio desse método, Sócrates tinha por objetivo que seu interlocutor ampliasse seu espírito, ao desfazer-se de uma autossuficiência ilusória. As pessoas que suportavam a ironia, primeira fase, não se aborrecendo e não indo embora, eram levadas, pelo diálogo com Sócrates, a responder coisas que jamais imaginavam saber: isto é, chegar a conceitos precisos, frutos de longo diálogo construtivo. Assim nasce a episteme, a ciência, o conhecimento verdadeiro, como resultado do método.

Diferentemente dos sofistas, o pensamento socrático-platônico separa opinião e verdade, aparência e realidade, percepção sensorial e pensamento racional. O objetivo era sair da multiplicidade das opiniões e chegar à unidade da ideia. Para sair do particular e chegar ao universal, o método dialético é o procedimento adotado por Sócrates e Platão. Não se pode agir racionalmente enquanto se permanecer preso às opiniões particulares. Somente quando se alcança um conceito capaz de dar conta de alguma multiplicidade se pode pensar as coisas de modo isento de contradições. Como se pode julgar, por exemplo, se uma ação é justa ou injusta se não se sabe o que é a justiça?

As questões que Sócrates privilegia são as referentes à moral, daí sua insistência em perguntar em que consiste a coragem, a covardia, a piedade, a justiça etc. Diante de diversas manifestações de coragem, quer saber em que consiste a coragem em si, o logos, o conceito. Dessa forma, o conceito é o fruto, o término, o desfecho de um processo que, dialeticamente, leva da multiplicidade à unidade.

Quanto às finalidades do método socrático, primordialmente, temos a educação ética do cidadão, o lapidar de sua alma. Ao entrar em diálogo com Sócrates, o interlocutor era levado a um "exame da alma" e a uma prestação de contas da própria vida que levava. E foi esse "prestar contas da própria vida" que lhe custou a própria vida, pois não é tarefa fácil aceitar ser corrigido, podado, lapidado. Isso incomoda. Para muitos, calar Sócrates através da morte significava libertar-se de ter que desnudar a própria alma.

Pode-se observar, pelo método de Sócrates, que a filosofia tem uma função de parteira que, após longa gestação, auxilia no nascimento da ideia, a formação do conceito. Aqui não cabe dogmatismo, nem o princípio da autoridade. A verdade era objeto de permanente busca e não algo dado a priori.

No diálogo Mênon, Platão apresenta um diálogo de Sócrates com Mênon, no qual deixa explicita a sua metodologia: [n. 84] Vês a distância que ele já percorreu no percurso da reminiscência? A princípio, não sabendo o lado do quadrado de oito pés, que aliás ainda não sabe, julgava sabê-lo e respondia com segurança, como se soubesse, sem qualquer sentido da dificuldade. Agora tem consciência do seu embaraço e, embora não saiba, pelo menos não julga que sabe. [...]. Veja como este jovem responde procurando comigo... e veja como consegue encontrar... enquanto não faço mais do que interrogar, sem nada ensinar-lhe.
(PLATÃO. Mênon. Trad. Maura Iglesias. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio / São Paulo: Edições Loyola, 2001)


Nesse fragmento, verificam-se os passos da metodologia adotada por Sócrates em seus dois tempos constitutivos: a parte da refutação e a parte da busca

Sócrates via o seu magistério como uma missão e tarefa que seu deus interior (daimon) lhe ordenara executar para o bem da cidade. Assim, o ato de filosofar e buscar a verdade é um serviço à pólis.

Com efeito, o elemento decisivo aqui é a ciência ou o conhecimento, pois sem ele não será possível a virtude, a liberdade, a justiça e outros valores morais. Por isso, a tarefa é proporcionar aos homens o acesso ao conhecimento. Para Sócrates, é impossível conhecer o bem e não fazê-lo. Por isso, o reto pensar e o reto agir são coisas inseparáveis. Assim sendo, a virtude resulta da ciência, ou, de outra forma, a ciência conduz à virtude, pois razão e caráter são inseparáveis. Assim, o sábio é bom e justo, seu saber guia sua vida.

Ao que nós chamamos de virtude, em grego se chama arete, significando o que torna uma coisa boa e perfeita, transformando uma coisa no que ela deve ser. A virtude do homem outra coisa não pode ser senão aquilo que faz com que a alma (a essência humana, a consciência) seja tal como a sua natureza determina que seja, isto é, excelente, boa e perfeita.

Em decorrência, todos os valores tornam-se efetivamente valores se forem usados como o conhecimento o exige, ou seja, em função da alma e de sua arete. Assim, se a riqueza, o poder, a fama, a saúde, a beleza e semelhantes forem dirigidos pela ignorância, jamais serão valores, mas contribuirão para a ruína do homem.

Para Sócrates, portanto, o conhecimento é condição necessária e suficiente para fazer o bem. Dessa forma, a virtude (sabedoria prática, justiça, fortaleza, temperança) é conhecimento e o vício é ignorância. Por isso, a areté socrática é um valor espiritual, ou seja, relacionada à psique, à alma, à consciência.

Considerando a implicação prática e existencial do conhecimento, a excelência da alma humana (psique) consiste no autodomínio (enkrateia), ou seja, no domínio de si mesmo, de suas paixões e impulsos. Essencialmente, o autodomínio significa domínio de sua racionalidade sobre a sua própria animalidade. Em decorrência, o homem verdadeiramente livre é aquele que consegue dominar os seus instintos e desejos, e o homem que se torna vítima de seus instintos e desejos desordenados torna-se um escravo.

Vinculado ao conceito de autodomínio e liberdade está o conceito de autarquia, de ser suficiente a si mesmo, de ser livre de necessidades, capaz de autodomínio. Estamos aqui diante de uma nova concepção de herói. O herói, tradicionalmente, era o ser humano capaz de vencer os inimigos, os perigos, as adversidades e o cansaço externos. Já o novo herói é o que sabe vencer os inimigos interiores.

“Não descurava do corpo nem aprovava os que o fazem. Rejeitava o comer com excesso, para depois não fatigar-se outro tanto, recomendando um repasto regulado pelo apetite e seguido de exercício moderado. Este regime __ dizia __ conserva a saúde do espírito.”

(XENOFONTE, Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. Trad. Líbero Rangel de Andrade. São Paulo: Nova Cultural, 1987. Livro I. Cap. II.. p. 37.(Os Pensadores).

Para W. Jaeger: “Sócrates é o mais espantoso fenômeno pedagógico da história do ocidente”. (JAEGER, W. Paideia: A formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 512)

Celito Meier

5. OS SOFISTAS E A ORATÓRIA: O ENSINO DA VIRTUDE

Conforme vimos, a Filosofia pré-socrática do século VI a.C estava centrada no problema cosmológico, da physis (mundo natural) e da busca do arché, i.é, do princípio explicativo do movimento e do vir-a-ser dos fenômenos naturais. O olhar humano era um olhar para fora de si, para os céus e para a imensidão do mundo. Era o período da chamada Filosofia naturalista.
Durante o século V a.C, o problema antropológico vai tomando corpo, sobrepondo-se, progressivamente, ao cosmológico. Existem alguns antecedentes importantes que exerceram grande influência para essa passagem. A reflexão filosófica se desloca das colônias gregas da Ásia Menor para a Grécia continental, para Atenas, que acaba de sair vitoriosa da guerra contra os persas.
O novo contexto urbano e comercial,que caracterizava Atenas, estava fazendo a transição da aristocracia para a democracia. Por isso, os ideais aristocráticos, que defendiam uma concepção de virtude como traço vinculado ao sangue, à herança genética dos “melhores por nascimento” serão superados por uma visão democrática, e serão substituídos por uma ideia de virtude como aprendizagem do discurso, da persuasão, recorrendo a gestos, pausas, entonações, olhar voltado paras o público. É a habilidade de realizar um discurso bem estruturado, defendendo um ponto de vista, sabendo influenciar o comportamento dos ouvintes
Platão, em seu diálogo Protágoras, ocupa-se basicamente com o tema da virtude, investigando se ela é ensinável ou não. Vejamos um fragmento, no qual Protágoras, um dos maiores representantes dos sofistas, se identifica como sofista em diálogo com Sócrates.
Fala de PROTÁGORAS – “Admito ser um sofista e educar as pessoas, julgando que a preocupação de admitir em lugar de negar é a melhor das duas. [...] Já exerço essa profissão há muitos anos, muitos daqueles que vivi tendo sido devotados a ela. [...]. O que ensino é ter bom discernimento e bem deliberar seja nos assuntos privados, mostrando como administrar com excelência os negócios domésticos, seja nos assuntos do Estado, mostrando como pode exercer máxima influência nos negócios públicos, tanto através do discurso quanto através da ação”.
Fala de SÓCRATES – “Estarei acompanhado o que dizes? Pareces estar te referindo à arte cívica, e se propondo a fazer dos homens bons cidadãos”
Fala de PROTÁGORAS – Esse, Sócrates, é precisamente o sentido do que professo (Protágoras, 317b. 319a]
PLATÃO. “Protágoras”. In: Platão. Diálogos I: Teeteto, Sofista, Protágoras. Tradução e notas Edson Bini. Bauru. SP: EDIPRO, 2007, p.262-263.
A retórica dos sofistas foi fortemente criticada por Sócrates e Platão, por não apresentar compromisso com a verdade. Na retórica, torna-se fundamental saber concatenar as ideias, pois tem como objetivo a persuasão, o convencimento. Trata-se de buscar, em cada questão e momento, o que parece ser mais decisivo para persuadir. A retórica é mais abrangente que a oratória, por não depender da presença de platéia ou público. Por exemplo, saber convencer por meio de um texto é uma virtude retórica.
A nova sociedade civil e urbana emergente, embora possuísse um ideal de homem e de cidadão diferente da sociedade aristocrática, não tinha um sistema de educação para atingir esse ideal. Por isso, logo percebeu a necessidade de uma educação capaz de satisfazer os ideais do homem da polis.
Para W Jaeger. “O ingresso da massa na atividade política, causa originária e característica da democracia, é um pressuposto histórico necessário para se colocarem conscientemente os problemas eternos que com tanta profundidade o pensamento grego se colocou naquela fase da sua evolução e legou à posteridade”. (JAEGER, W. Paideia. Trad. Artur Parreira. São Paulo: Martins fontes,2001.p. 337).
Em sociedade de perfil mais democrático, a última palavra não cabe mais ao critério hierárquico, cultuado através da tradição. Muitos são os que pretendem ingressar na vida política, alimentando o desejo de se tornarem, um dia, dirigentes do Estado. No estado democrático, marcado pelas assembleias públicas e pela liberdade da palavra, torna-se indispensável o poder da oratória. Dessa forma, a eloquência se converte no grande objetivo da educação política dos futuros líderes. O elemento comum que une os sofistas é o fato de serem mestres da areté política, concebida como persuasão.
Conforme muito bem expresso por Giovanni Reale, “Os sofistas, com efeito, operaram verdadeira revolução espiritual (deslocando o eixo da reflexão filosófica da physis e do cosmo para o homem e àquilo que concerne à vida do homem, como membro de uma sociedade) e, portanto, centrando seus interesses sobre a ética, a política, a retórica, a arte, a língua, a religião e a educação, ou seja, sobre aquilo que hoje chamamos a cultura do homem. Portanto, é exato afirmar que, com os Sofistas, inicia-se o período humanista da Filosofia antiga”.
(REALE, G., ANTISERI, D. Historia da Filosofia: Filosofia pagã antiga. Trad. Ivo Storniolo. Vol 1. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004. p. 127-128)
HUMANISMO E RELATIVISMO

O lema dos sofistas encontra-se resumido na afirmativa de Protágoras (490-415 a.C), que estabelece o homem como medida de todas as coisas. “O ser humano é a medida de todas as coisas, da existência das coisas que são e da não existência das coisas que não são”. (PLATÃO. Teeteto, 152 a. In: Platão. Diálogos I: Teeteto, Sofista, Protágoras. Tradução e notas Edson Bini. Bauru. SP: EDIPRO, 2007, p. 57). Esse fragmento, de certa forma, sintetiza a nossa compreensão a respeito dos sofistas em duas ideias centrais sempre associadas: o humanismo e o relativismo.

A palavra "sofista" significa "especialista do saber"; sua raiz é "sophos"= sábio. Uma singularidade da atuação dos sofistas é seu foco em objetivos práticos, e não mais contemplativos ou teoréticos. O seu objetivo é exercer influência no presente, no cotidiano da vida da cidade, especialmente na formação da habilidade persuasiva dos jovens, para sua participação política.

A técnica argumentativa de Protágoras está presente em seu tratado Antilogia. Nele, como a palavra já o diz, desenvolve a antilogia, a técnica de mostrar os argumentos a favor e contra certas posições, sendo ambas defensáveis. Infelizmente, essa obra de Protágoras se perdeu.

Górgias de Leontino (487-380 a.C) é outro grande representante sofista. Segundo Górgias, é impossível um conhecimento preciso e estável das coisas. E mesmo que fosse possível conhecer algo, nossa palavra seria impotente para comunicar sua verdade. E disso resultaria a incompreensão da própria realidade.

Na impossibilidade de termos acesso à natureza das coisas, tudo o que podemos é proferir discursos, que, no entanto, não podem ser verdadeiros, nem, se o fossem, reconhecidos como verdadeiros. O lógos pode e consegue ser persuasivo, e nisso está a sua importância.

Para os sofistas, será por meio da educação e da formação de habilidades fundamentais, como retórica e persuasão, que se formará o verdadeiro cidadão, hábil na participação política. É preciso conseguir sobressair e derrubar argumentos alheios.

No Diálogo Eutidemo, o pensamento socrático-platônico faz uma profunda crítica à habilidade erística dos sofistas: a arte de lutar com palavras e de contrapor tudo o que se vai dizendo, seja falso ou verdadeiro. Essa habilidade erística busca a habilidade que busca a vitória na argumentação, independentemente da verdade. Ela recorre a diferentes técnicas de manipulação da palavra como, as falácias, que consistem em um raciocínio errado com aparência de verdade, um argumento sem consistência, logicamente inválido em sua tentativa de provar algo. Além das falácias, a erística recorre a silêncios e ambiguidades verbais, usando-as como estratégias persuasivas.

Celito Meier

4. PRÉ-SOCRÁTICOS: PARMENIDES E HERÁCLITO

HERÁCLITO DE ÉFESO E O MOVIMMENTO DOS CONTRÁRIOS

Heráclito (540-470 a. C) nasceu em Éfeso, cidade da Jônia. Conhece-se sua obra somente através de curtos fragmentos. Heráclito se apresenta como mensageiro de um logos, de um sentido que o ultrapassa e do qual é apenas intérprete: O logos é aquilo segundo o qual todas as coisas acontecem (fr. 1), governa o mundo (fr.72) e abriga-se na alma (fr. 45). O Logos transmite-nos o sentido, cabe a nós decifrá-lo na medida de nossas possibilidades e forças.
Para Heráclito, a natureza é a vida dos contrários; nela, as diferenças se harmonizam, sem se anular mutuamente. Essa harmonia mantém-se sob tensão, pois os contrários tendem a se separar, conforme dito no fragmento 8: “[...] o contrário é convergente e dos divergentes nasce a mais bela harmonia, e tudo segundo a discórdia”. Por isso, a identidade passa pela diferença e a diferença se encontra na identidade. Assim, “a rota para cima e para baixo é uma e a mesma” (fr.60) e “o mesmo é em (nós?) vivo e morto, desperto e dormindo, novo e velho; pois estes, tombado além, são aqueles e aqueles de novo, tombados além, são estes (fr. 88)

Sua filosofia é perpassada pela ideia do devir eterno, pela transformação incessante de todas as coisas. A realidade natural se caracteriza pelo movimento. Tudo flui. Nada permanece o mesmo. O mundo é um perpétuo renascer e morrer, rejuvenescer e envelhecer. “O Sol é novo a cada dia”. A vida se transforma em morte e a morte em vida. “Aos quer entram nos mesmos rios outras águas afluem” (fr. 12) “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos”. (fr. 49 a).

Assim, o devir é metamorfose permanente das coisas que se corrompem e se transformam. No devir, encontramos a síntese da afirmação e da negação. “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio” (fr. 91). E nesse mesmo fragmento, Heráclito diz: “Nem [é possível] tocar substância mortal duas vezes na mesa condição; mas pela intensidade e rapidez da mudança dispersa e de novo reúne ( ou melhor, nem mesmo de novo nem depois, mas ao mesmo tempo) compõe-se e desiste, aproxima-se e afasta-se”.

É aqui, no campo do devir, que a luta dos contrários acontece e nos possibilita conhecer algo. A verdade encontra-se no devir. “Pois a (coisa) sábia é uma só, possuir o conhecimento que tudo dirige através de tudo” (fr.41). Resta-nos a impossibilidade de conhecer o fundamento: “o modo humano não comporta sentenças, mas o divino comporta” (fr. 78).

Enquanto Tales de Mileto fizera da água o princípio de todas as coisas e Anaximandro escolhera o ar, Heráclito opta por ver no fogo o elemento explicativo dos diferentes fenômenos.

Heráclito, seguramente, encontra-se na base ou na origem do pensamento dialético da filosofia, uma vez que, em sua concepção o fundamento da realidade está na afirmação e na aceitação da luta dos contrários, na afirmação de que a contradição entre os seres é o motor do mundo

PARMÊNIDES E A IMUTABILIDADE DO SER

Temos poucos dados de Parmênides. Ele deve ter nascido por volta de 515, século VI a.C, parece ter se encontrado com o jovem Sócrates e ter sido discípulo de Xenófanes. Conhecia e discordava da teoria de Heráclito. Por afirmar o movimento permanente, Heráclito é tido como representante do mobilismo, concepção segundo a qual tudo está em mudança o tempo todo. Parmênides e os eleatas são adversários dos mobilistas, defendendo uma posição que podemos denominar como sendo monista, afirmando uma realidade única. De sua obra, escrita em versos, ficaram-nos 155 versos. O poema de Parmênides é conhecido como Da Natureza, que distingue a verdade (alethéia) da opinião (dóxa).

Nas palavras de Bernadete Abrão: “Parmênides, ao contrário de Heráclito, procura eliminar tudo o que seja variável e contraditório. Se uma coisa existe, ela é esta coisa e não pode ser outra, muito menos o seu contrário. [...] O ser é o ser, ou resumidamente, o ser é. Segue-se logicamente que não-ser não é, não pode existir”. (ABRÃO, Bernadete Siqueira (Org.) História da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p.32)

Parmênides traz uma concepção grega, na qual o pensar e o falar é dizer o ser; quem diz, diz o que é. Não se pode, ao dizer, referir-se ao que não é. Nesse sentido, dizer é produzir o ser. Torna-se impossível, dessa forma, afirmar ao mesmo tempo uma coisa e seu contrário. O ser é e não pode não ser. O ser é eterno, imóvel, indestrutível. Não tem origem, nada pode haver antes dele ou depois dele. Obrigatoriamente, o ser é uno e indivisível, pois se houvesse outro ser, o que ele seria? E se se dividisse, o que seriam as outras partes? outros seres? Isso não é possível. O ser é uno. Além disso, o ser é também pleno, não admite o vazio, que é não ser.Em decorrência, Parmênides se refere às aparências como fugazes, como ilusões. Portanto, quem se concentra nas aparências não se concentra no ser, não se faz fiel ao ser, apenas no movimento e, portanto, no não-ser.

Com Parmênides, o pensamento lógico se fortalece, na medida em que ele evidencia os problemas de se pensar a contradição e, com isso, problematiza a percepção das coisas como elas nos aparecem. A diferença entre Heráclito e Parmênides nos mostra os caminhos que fizeram nascer a filosofia. Os pensadores que vieram depois não podiam mais retroceder. Como articular o devir e o uno, a mudança e a permanência? Como mostrar a ideia de que é tão verdadeiro o que permanece idêntico a si quanto a multiplicidade e o movimento?

No desenvolvimento do pensamento filosófico naturalista, a natureza (physis) passará a ser concebida não mais como uma unidade, mas como pluralidade. Parmênides nos diz que o ser é e o nada não é. O nada não pode sequer ser pensado. Portanto, ser e pensar são o mesmo. O nada, por não ser, é indizível. Com Parmênides, introduzem-se na filosofia os dois princípios lógicos fundamentais de todo o pensar: o princípio da identidade (o ser é) e o princípio de não-contradição (“o que é não pode não ser, e o que não é, não pode ser).

Celito Meier

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9.1. EPICURISMO: felicidade e prazer da vida oculta e moderada

O EPICURISMO:

Com Epicuro de Samos (341-270) aparece de forma mais sistemática uma primeira proposta de vida para as exigências espirituais desse novo tempo de individualismo e distanciamento da vida política. Epicuro, desde cedo,dedicou-se à filosofia. Em Atenas, Epicuro comprou uma pequena propriedade na qual aconteciam as reuniões e as discussões filosóficas. Seus amigos tornaram-se seus discípulos. Epicuro expôs a sua doutrina num grande número de escritos, muitos deles perdidos.

Em Epicuro, encontramos uma ética voltada para a busca do prazer. Contudo, este não é entendido como o compreendemos a partir de um senso comum que diz prazer pelo puro prazer, máximo de prazer. É um conceito diferente de prazer.

Nessa concepção, o prazer é entendido em dois sentidos fundamentais. Em primeiro lugar, como aponia, que significa ausência de dor; em segundo lugar, como ataraxia, compreendida como serenidade de espírito, tranqüilidade de alma, paz interior. Trata-se de uma ética que convida a uma vida marcada pela capacidade de resistir e suportar a dor, o medo e o sofrimento que estão sempre à nossa volta.

Epicuro, na Carta a Meneceu, aborda a maneira de como o homem deve encarar a vida, à medida que procura a felicidade. Qualquer pessoa, em qualquer idade, pode buscar a felicidade, dedicando-se à filosofia. Basicamente, para sermos felizes seriam necessárias três coisas: liberdade, amizade e tempo para meditar.
Dessa forma, a filosofia é a arte da vida, pois possibilita conhecimento do mundo, e assim, mediante o conhecimento, busca libertar o homem dos grandes temores que ele tem a respeito da finitude da existência.

Sobre a natureza dos prazer, Epicuro afirma:

“Consideremos também que, dentre os desejos, há os que são naturais e os que são inúteis; dentre os que são naturais, há uns que são necessários e outros, apenas naturais; dentre os necessários, há alguns que são fundamentais para a felicidade, outros, para o bem estar corporal, outros ainda para a própria vida. E o conhecimento seguro dos desejos leva a direcionar toda a escolha e toda a recusa para a saúde do corpo e para a serenidade do espírito, visto que esta é a finalidade da vida feliz: em razão desse fim praticamos todas as nossas ações, para nos afastarmos da dor e do medo. [...] Na tua opinião, será que pode existir alguém mais feliz do que o sábio, que tem um juízo reverente acerca dos deuses, que se comporta de modo absolutamente indiferente perante a morte, que bem compreende a finalidade da natureza, que discerne que o bem supremo está nas coisas simples e fáceis de obter, e que o mal supremo ou dura pouco, ou só nos causa sofrimentos leves? Que nega o destino, apresentado por alguns como senhor de tudo, já que as coisas acontecem ou por necessidade, ou por acaso, ou por vontade nossa; e que a necessidade é incoercível, o acaso instável, enquanto nossa vontade é livre, razão pela qual nos acompanham a censura e o louvor?”

EPICURO. Carta sobre a Felicidade (a Meneceu). Trad. de Álvaro Lorencini e Enzo Del Carratore. São Paulo: Editora Unesp, 2002.
Segundo Epicuro, os nossos prazeres são de três naturezas: em primeiro lugar, os prazeres naturais e necessários: comer, beber e dormir, quando se tem necessidade. Em segundo lugar, os prazeres igualmente naturais, porém não necessários: beber vinhos, comer em pratos sofisticados, dormir em lençóis de seda. Essa dinâmica do desejo não tem fim; segui-la, sem discernimento, implica o fim da paz interior. Em terceiro lugar, Epicuro fala dos prazeres que não são nem naturais, nem necessários. Refere-se apenas aos que criamos para nós mesmos e dos quais nos tornamos escravos: o luxo e a riqueza. Dessa forma, Epicuro combate a opção pelo prazer desordenado e desmedido e tem plena consciência do preço que se paga ao se pretender seguir as orientações do desejo: alienação da liberdade, ou seja, uma vida na qual o sujeito se torna servo de suas paixões ou de seus impulsos.
Com essa busca pela ataraxia, pela paz interior de uma vida tranquila, o princípio que move o pensamento e as ações de Epicuro solicita o ocultamento da vida, a retirada para a vida privada.Dessa forma, percebemos uma resposta à nova situação política, na qual o homem deixa de ser cidadão e as preocupações giram em torno da individualidade. Nesse contexto, a política torna-se sinônimo e fonte de agitação. Enveredar na política significaria desperdiçar um precioso tempo que poderia ser investido no cuidado da própria alma. Dessa forma, em vez das infindáveis discussões na ágora, na praça pública, Epicuro propõe o cultivo da amizade, pois não há felicidade sem amizade.
Nessa perspectiva, a valorização do prazer como algo natural e que deve ser buscado com moderação e equilíbrio, para proporcionar a paz interior, torna-se característica fundamental do epicurismo. A austeridade faz parte da vida feliz, mas não a supressão dos prazeres e desejos naturais.
Vamos ler alguns fragmentos desta bela carta de Epicuro a Meneceu
A carta inicia-se com a exortação ao exercício da filosofia, como condição de vida feliz. O medo da morte, como o mais aterrador dos males, deve ser superado, uma vez que o que importa não é viver eternamente, mas a qualidade de uma vida refletida. Embora o prazer seja objetivo da vida, tendo em vista a saúde do corpo e do espírito, faz-se fundamental o controle dos prazeres, uma conduta comedida, que conduza a uma vida feliz. Essa sabedoria de vida, que se manifesta no discernimento dos prazeres que merecem ser vividos e dos que devem ser evitados devido aos desprazeres que ocasionam, constitui a vida do sábio.
CARTA SOBRE A FELICIDADE (a Meneceu)

“Que ninguém hesite em se dedicar à Filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à Filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz. Desse modo, a Filosofia é útil tanto ao jovem quanto ao velho: para quem está envelhecendo sentir-se rejuvenescer através da grata recordação das coisas que já se foram, e para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir; é necessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a felicidade, já que, estando esta presente, tudo temos, e, sem ela, tudo fazemos para alcançá-la”. [...]

“Embora o prazer seja nosso bem primeiro e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há ocasiões em que evitamos muitos prazeres, quando deles nos advêm efeitos o mais das vezes desagradáveis; ao passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por muito tempo. Portanto, todo prazer constitui um bem por sua própria natureza; não obstante isso, nem todos são escolhidos; do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem ser sempre evitadas. Convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos”
“Consideramos ainda a autossuficiência um grande bem; não que devamos nos satisfazer com pouco, mas para nos contentarmos com esse pouco caso não tenhamos o muito, honestamente convencidos de que desfrutam melhor a abundância os que menos dependem dela; tudo o que é natural é fácil de conseguir; difícil é tudo o que é inútil.” [...]
“Quando então dizemos que o fim último é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no gozo dos sentidos, como acreditam as pessoas que ignoram o nosso pensamento, ou não concordam com ele, ou o interpretam erroneamente, mas ao prazer que é a ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da alma. Não são, pois, bebidas nem banquetes contínuos, nem a posse de mulheres e rapazes, nem o sabor dos peixes ou das outras iguarias de uma mesa farta que tornam doce uma vida, mas um exame cuidadoso que investigue as causas de toda escolha e de toda rejeição e que remova as opiniões falsas em virtude das quais uma imensa perturbação toma conta dos espíritos. De todas essas coisas, a prudência é o princípio e o supremo bem, razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria Filosofia; é dela que originaram todas as demais virtudes; é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça, e que não existe prudência, beleza e justiça sem felicidade. Porque as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade, e a felicidade é inseparável delas”. [...]
“Medita, pois, todas estas coisas e muitas outras a elas congêneres, dia e noite, contigo mesmo e com teus semelhantes, e nunca mais te sentirás perturbado, quer acordado, quer dormindo, mas viverás como um deus entre os homens. Porque não se assemelha absolutamente a um mortal o homem que vive entre bens imortais”.
EPICURO. Carta sobre a Felicidade (a Meneceu). Trad. de Álvaro Lorencini e Enzo Del Carratore. São Paulo: Editora Unesp, 2002.

9.2. ESTOICISMO: obediência à lei natural

ESTOICISMO

Zenão de Cítio (334-262 a.C) é considerado o fundador da escola estóica. O termo “estoicismo” tem sua origem da palavra grega “stoa”, que significa pórtico, local onde os membros da escola se reuniam.
A doutrina estoica foi desenvolvida pelos discípulos de zenão, Cleantes de Assos (330-232 a.C) e Crisipo de Solis (280-208 a.C) Quais eram suas principais ideias? O pensamento dos estóicos pode ser pensado com base na metáfora da árvore. Assim como uma árvore, a filosofia também está estruturada em tres partes: a física corresponde à raíz; a lógica ao tronco; e a ética equivale aos frutos. Assim como os frutos são as coisas que mais buscamos na árvore, a ética receberá maior atenção na filosofia estóica. Mas não devemos jamais esquecer que assim como os frutos não existem sem as raízes e o tronco, a ética também não existe sem a física e a lógica.
A física refere-se ao mundo natural, ao universo, que é um todo solidário, dirigido por uma razão universal. Na visão estoica, o Cosmo é um ser vivo, animado e racional, em que cada parte é governada por uma razão.
O ser humano vive dentro desse Universo, no interior das leis que regem esse macrocosmo. Por isso, a conduta humana deve buscar uma vida em harmonia com esse Universo. Assim, a felicidade virá dessa conduta ética, de uma vida em conformidade com as orientações da razão e em harmonia com o mundo natural.
Considerando a racionalidade que move o mundo natural, ele é perfeito. Tudo o que acontece nele tem razão de ser, tudo o que acontece existe por uma necessidade racional. Essa concepção estoica de necessidade permite-nos falar em um determinismo ético, que implica em aceitar o curso ou o fluxo inevitável dos acontecimentos, que obedecem à razão universal que tudo governa.
Leia o trecho que segue, de Marco Aurélio, que bem expressa o pensamento estoico:

“Na vida de um homem, sua duração é um ponto, sua essência, um fluxo, seus sentidos, um turbilhão, todo o seu corpo, algo pronto a apodrecer, sua alma, inquietude, seu destino, obscuro, e sua fama, duvidosa. Em resumo, tudo o que é relativo ao corpo é como o fluxo de um rio, e, quanto á alma, sonhos e fluidos, a vida é uma luta, uma breve estadia numa terra estranha, e a reputação, esquecimento. O que pode, portanto, ter o poder de guiar nossos passos? Somente uma única coisa: a Filosofia. Ela consiste em abster-nos de contrariar e ofender o espírito divino que habita em nós, em transcender o prazer e a dor, não fazer nada sem propósito, evitar a falsidade e a dissimulação, não depender das ações dos outros, aceitar o que acontece, pois tudo provém de uma mesma fonte e, sobretudo, aguardar a morte com calma e resignação, pois ela nada mais é que a dissolução dos elementos pelos quais são formados todos os seres vivos. Se não há nada de terrível para esses elementos em sua contínua transformação, por que, então, temer as mudanças e a dissolução do todo?”
(MARCO AURÉLIO, Meditações)

Com esse pensamento estoico, percebemos a ligação entre física e ética e entre natureza e conduta do sujeito. Considerando os princípios e os valores da ação humana e tendo como horizonte de busca a harmonia com o mundo e a vida feliz, os estoicos estabelecem algumas virtudes como fundamentais: valorizam a inteligência, que se manifestaria no conhecimento e no discernimento do bem e do mal; destacam também a coragem, que se mostraria no conhecimento e na ação, relacionados ao que deve ou não ser temido; e defendem a indiferença (apathea) e o autocontrole na aceitação dos acontecimentos da vida.
Não devemos confundir indiferença com inação ou passividade. Cada ser humano deve fazer tudo o que estiver ao seu alcance e que julgar, com sua inteligência, que deve ser feito. Contudo, é preciso saber aceitar as coisas que acontecem, à luz das quais reconhecemos nossa impotência. Essa concepção ocasionou interpretações segundo as quais a ética estoica traz uma ideia de destino ou de fatalismo.
A ética estoica é uma ética da felicidade (eudaimonia) que consiste em encontrar a imperturbabilidade da alma (ataraxia), também compreendida como paz interior ou serenidade de espírito. Esse estado espiritual é possível pela atitude de autocontrole, com a habilidade de não lutar contra o curso dos acontecimentos.
Considerando a inteligencia como aquilo por meio do que o homem se torna livre e feliz, o sábio não apreende o seu verdadeiro bem nos objetos externos. Ele aprende servindo-se desses objetos com uma sabedoria mediante a qual supera qualquer possibilidade de paixoes ou coisas exteriores governarem sua vida, conquistando a ataraxia e a autarquia, ou seja o poder sobre si mesmo, o autocontrole e a independência interior.
Pensando que o Univeso tem uma razão de ser que escapa às nossas finitas capacidades de compreensão, existe para nós a inapreensibilidade do mundo. Por isso, em termos de conhecimento e de emissão de juízos sobre a verdade de algo, tornsa-se importante aprender a não fazer afirmações categóricas sobre a realidade que nos transcende. Assim, os estóicos trazem a noção de suspensão do juízo (époche), de silêncio prudente, que também está presente no ceticismo, onde aprofundaremos essa noção.

A partir do século I, encontraremos o estoicismo em Roma. Um dos represenrtantes mais expressivos desse estoicismo latino foi Sêneca (4 a.C -65 d.C
Vejamos o trecho a seguir, no qual Sêneca reflete sobre a importância da meditação e da vida reflexiva: “Ouvirás muitos dizerem: ‘Aos cinquenta anos me refugiarei no ócio, aos sessenta estarei livre de meus encargos’. E quem garantirá que tudo irá conforme planejas? Não te envergonhas de reservar para ti apenas as sobras da vida e destinar à meditação somente a idade que já não serve para mais nada? Quão tarde começas a viver, quando já é hora de deixar de fazê-lo. Que negligência tão louca a dos mortais, de adiar para o quinquagésimo ou sexagésimo ano os prudentes juízos, e a partir deste ponto, ao qual poucos chegaram, querer começar a viver!”
(SÊNECA, Sobre a brevidade da vida. Trad. William Li. São Paulo: Nova Cultural, 1993.).


Entre a vida breve e a vida profunda

No texto a seguir, Sêneca reflete sobre diferentes estilos de vida. A maneira como uns vivem a vida, torna a vida breve. A forma como outros vivem a vida, torna a vida profunda.
O texto de Sêneca (4 a.C.-65) é uma exortação à Filosofia. Trata-se de exortar o destinatário, Paulino, seu sogro de Sêneca, que ocupava um alto cargo na burocracia imperial, a abandonar a vida pública e dedicar-se ao ócio literário e ao estudo da Filosofia. Acompanhemos algumas partes do texto.

Da brevidade da vida

“A maior parte dos mortais, Paulino, queixa da malevolência da Natureza, porque estamos destinados a um momento da eternidade, e, segundo eles, o espaço de tempo que nos foi dado corre tão veloz e rápido de forma que, à exceção de muitos poucos, a vida abandonaria a todos em meio aos preparativos mesmos para a vida. E não é somente a multidão e a turba insensata que se lamenta deste mal considerado universal: a mesma impressão provocou queixas também de homens ilustres. Daí, o protesto do maior dos médicos: “A vida é breve, longa, a arte” [Referindo-se a Hipócrates].

Não é curto o tempo que temos, mas dele muito perdemos. A vida é suficientemente longa e com generosidade nos foi dada, para a realização das maiores coisas, se a empregamos bem. Mas, quando ela se esvai no luxo e na indiferença, quando não a empregamos em nada de bom, então, finalmente constrangidos pela fatalidade, sentimos que ela já passou por nós sem que tivéssemos percebido.

A maioria, que não persegue nenhum objetivo fixo, é atirada a novos desígnios por uma vaga e inconstante leviandade, desgostando-se com isso; alguns não definiram para onde dirigir sua vida, e o destino surpreende-os esgotados e bocejantes, de tal forma que não duvido ser verdadeiro o que disse, à maneira de oráculo, o maior dos poetas: “Pequena é a parte da vida que vivemos”. [Provável referência a Homero ou Virgílio]

Pois todo o restante não é vida, mas tempo. Os vícios atacam-nos, e rodeiam-nos de todos os lados e não permitem que nos reergamos, nem que os olhos se voltem para discernir a verdade, mantendo-os submersos, pregados às paixões. Nunca é permitido às suas vítimas voltar a si: se por acaso acontecer de encontrarem alguma trégua, ainda assim, tal como no fundo do mar, no qual, mesmo após a tempestade, ainda há agitação, eles ainda assim são o joguete das paixões, e nenhum repouso lhes é concedido. [...]

Quantos não estão pálidos por causa de seus contínuos prazeres! A quantos a vasta multidão de clientes não dá nenhuma liberdade! [...] este é um servidor daquele, que o é de um outro, ninguém pertence a si próprio.
Sêneca, Lúcio Aneu.Sobre a brevidade da vida. Trad William Li. São Paulo: Nova Alexandria, 1993.

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9.3. CETICISMO: Conhecimento e suspensão de juízo

O CETICISMO

Você já ouviu falar em ceticismo ou em sujeito cético? No senso comum, o ceticismo é confundido com a atitude de descrença generalizada ou de dúvida sobre tudo. Contudo, é preciso um olhar mais atento para compreender a singularidade dessa corrente filosófica e postura de vida.
A Academia de Atenas, fundada por Platão por volta de 387 a. C, conheceu uma fase cética sob a liderança de Arcesilau (315-240 a.C) e de Carnéades (210- 129 a.C). Nesse contexto, os filósofos comumente se referem a ela como Nova Academia.
Assim, inicialmente temos um ceticismo acadêmico, que se diferencia do ceticismo pirrônico, inaugurado por Pirro de Élis (360-270 a.C). Dentre as melhores fontes para conhecer o ceticismo antigo estão os textos de Sexto Empírico, que viveu entre os séculos II e III d. C.
O trecho a seguir ajuda na compreensão da distinção existente entre o ceticismo acadêmico e o ceticismo pirrônico. Segue o fragmento de sexto empírico:
“O resultado natural de qualquer investigação é que aquele que investiga ou bem encontra o objeto de sua busca, ou bem nega que seja encontrável e confessa ser ele inapreensível ou ainda, persiste na busca. O mesmo ocorre com os objetos investigados pela filosofia, e é provavelmente por isso que alguns afirmaram ter descoberto a verdade, outros, que a verdade não pode ser apreendida, enquanto outros continuam buscando. Aqueles que afirmam ter descoberto são os “dogmáticos”, assim são chamados especialmente, Aristóteles, [...] Epicuro, os estóicos e alguns outros. Clitômaco, Carnéades e outros acadêmicos consideram a verdade inapreensível, e o céticos continuam buscando. Portanto, parece razoável manter que há três tipos de filosofia: a dogmática, a acadêmica e a cética”.
SEXTO EMPÍRICO. Hipotiposes pirrônicas. Livro I. Tradução Danilo Marcondes. In: O que nos faz pensar – Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC-Rio, Rio de Janeiro, n.12. set. 1997, p. 115

De acordo com a interpretação feita por Sexto Empírico, a principal diferença entre os acadêmicos e os céticos está no fato de os acadêmicos serem representantes de um dogmatismo negativo, pois afirmam ser impossível encontrar a verdade. Em contrapartida, os céticos da linhagem pirrônica continuam suas buscas. Esse sentido de busca continuada encontra-se na etimologia da palavra grega skepsis, que significa “investigação”, “indagação”. Para os céticos pirrônicos, a melhor atitude é suspender o juízo, ou seja, não decidir quanto à verdade ou falsidade de algo. Essa postura encontra em Pirro de Élis sua fundamentação. O pensamento e o estilo de vida de Pirro chegaram a nós por seu discípulo Tímon, uma vez que Pirro parece não ter escrito nenhum texto.

Método: suspensão do juízo

O que sabemos de Pirro é que ele se preocupava basicamente com a questão da possibilidade de conhecer algo de modo seguro. O que são as coisas e suas essências? Existirá um critério de verdade sobre o qual não caiba algum questionamento. A reflexão de Pirro chega à aphasia, que significa ausência de discurso, uma ideia parecida com suspensão de juízo, depois de reconhecer que nem a razão, nem os sentidos são capazes de captar e de conhecer alguma essência das coisas.
Portanto, podemos falar em um método, em uma forma de pensar que consiste na suspensão do juízo, com base na percepção de que não temos acesso a um critério capaz de nos fornecer a verdade, a essência ou a natureza de algo. Dessa constatação e atitude resulta a serenidade, a ataraxia. Em outras palavras, se não parece ser possível encontrar a essência de algo, o mais sensato é evitar o juízo que afirma uma verdade ou que a nega categoricamente. Em decorrência disso, colhe-se uma paz espiritual, uma quietude, uma tranqüilidade.
Considerando que o objetivo da vida dos céticos é alcançar o estado de paz interior, de ataraxia, de imperturbabilidade, um dos passos para alcançar esse objetivo é o método que podemos denominar como suspensão de juízo. Contudo, é necessário lembrar que essa ausência de um discurso afirmativo ou de negação não significa ausência de percepção, nem mesmo ausência de manifestação da percepção. Ao contrário, é justamente a manifestação e o reconhecimento da percepção como leitura particular. É nesse sentido que o cético não dogmatiza, não afirma, nem nega categoricamente algo.
O ceticismo compartilha com outras escolas helenísticas essa busca por um ideal de vida de serenidade, especialmente com o estoicismo e o epicurismo. Elas têm em comum essa ética eudaimonista, ou seja, uma ética da felicidade, que implica moderação e paz interior. Temos aqui uma filosofia voltada para a vida prática, com preocupações de natureza ética.

9.4. CINISMO: indiferença diante das convenções culturais

O CINISMO

Se partirmos do senso comum, cinismo nos lembra falsidade e falta de transparência. Contudo, se olharmos para a história da filosofia, cinismo é o nome de escola filosófica, de um estilo de filosofia, inaugurada na Grécia por Antístenes (445-365, a.C), que foi, inclusive, discípulo de Sócrates. Na tradição filosófica, o filósofo cínico mais conhecido foi Diógenes, conhecido como o cão, de onde deriva o adjetivo cínico. Ele vivia dentro de um barril.

A imagem do cão, associada aos cínicos, faz referência a uma vida marcada pela atitude da indiferença perante as tradições e as convenções culturais. Mais do que indiferença, os cínicos eram muito críticos em relação aos costumes sociais.

Os cínicos defendiam um retorno mais próximo possível ao modo natural de vida, sem as preocupações comuns das pessoas que vivem em sociedade.


10. Filosofia Patrística de AGOSTINHO: O ser humano. O livre-arbítrio. O mal

AGOSTINHO: O ser humano. O livre-arbítrio. O mal

A filosofia cristã dos primeiros séculos, elaborada pelos padres da Igreja, é denominada Patrística. Inicialmente, essa filosofia tinha uma preocupação apologética, ou seja, de defesa do cristianismo contra os ataques dos chamados “pagãos” e defesa contra as heresias. Foi devido a essa necessidade de esclarecer os seus pressupostos, que o Cristianismo recorre à filosofia, à argumentação racional, nos moldes da filosofia grega clássica, buscando dar consistência lógica à sua doutrina.

Aurélio Agostinho (354-430) nasceu em Tagaste, Numídia, província romana ao norte da África; hoje, Argélia. Sua vida se transcorre nos últimos anos do Império Romano, Império esse marcado pela decadência e dissolução. Em 373, como 19 anos de idade. Agostinho aderiu ao maniqueísmo, uma religião fundada pelo persa Mani, no século III.. O maniqueísmo é uma concepção religiosa dualista, em conformidade com a qual o mundo é dividido em duas substancias contrárias, originadas de dois princípios contrários, dois reinos, o reino da luz e o reino das sombras, o Bem e o Mal. Para o maniqueu, o espírito é bom em si mesmo e a matéria é o elemento mau em si mesmo. Insatisfeito com o maniqueísmo, Agostinho se converte ao cristianismo em 386.

A antropologia em Agostinho

Na elaboração de sua antropologia cristã, Agostinho teve três grandes influencias. A primeira delas, o neoplatonismo, nas interpretações de Plotino e de Porfírio, está bem visível no pensamento que Agostinho desenvolveu em sua obra Confissões, especialmente na reflexão sobre a estrutura do homem interior, em que a verdade divina habita como interior e superior. Agostinho recebeu a segunda grande influência da antropologia paulina, do apóstolo Paulo. Inspirado por essa influência, ele irá formular a doutrina do pecado original e da graça, da liberdade e do livre-arbítrio.
A terceira influência, que marcou a sua concepção de ser humano, vem da antropologia presente na narração bíblica da criação do ser humano. A noção do ser humano como imagem de Deus tornou-se o paradigma de referência, o modelo à luz do qual a vida humana seria lida. Dentro dessa abordagem, um dos aspectos centrais da antropologia de Agostinho foi a ideia de homem itinerante, peregrino que estaria em busca de Deus. Esse aspecto de sua antropologia encontra-se bem expresso na imagem das duas cidades, presente no livro A cidade de Deu.
Outro aspecto que devemos dar atenção é a concepção de tempo e Agostinho, que não era circular, como na antropologia platônica, mas linear. Contudo, essa noção linear de tempo não deve ser vista como uma mera sucessão cronológica de fatos e eventos. Ao contrário, trata-se de um percurso evolutivo, de um crescimento até a fase final. Nessa noção linear de tempo, a história e o ser humano estavam orientados para Deus.

Segundo a tradição judaico-cristã, o mundo seria uma criação divina, presente eternamente na mente de Deus. Nessa concepção, Deus teria um plano racional eterno, que teria se exteriorizado e materializado no ato da criação. Entre todas as criaturas, de modo muito singular, estaria o ser humano, criado à imagem e semelhança de seu próprio criador. Dessa semelhança resultaria o caráter espiritual do ser humano, sua alma racional, substância com capacidade para governar o corpo na direção do bem, que estaria assistida pela graça divina.
Todas as criaturas teriam sido criadas para uma finalidade e seriam conduzidas pela providência no sentido do fim que lhes é próprio. Ora, a finalidade da criação humana seria a comunhão com a divindade. Contudo, essa comunhão teria sido quebrada pelo mau uso do livre-arbítrio que, seguindo os impulsos das paixões carnais, teria desviado a alma de seu objetivo maior, de sua felicidade, de Deus.
Por essa razão, teria surgido a realidade histórica do homem decaído, corrompido, afastado da comunhão e do poder de Deus. Devido à concretização dessa tendência carnal, ou seja, devido ao pecado, o ser humano teria se afastado de Deus, e perdido, com isso, toda a sua força, seu poder, pois estaria distante da graça.
Na teologia cristã, o conceito de graça refere-se a um atributo divino, a um componente do ser de Deus, à sua ação gratuita que fornece auxilio aos seres humanos para poderem realizar uma existência mais conforme com o querer divino. Não se trata de mérito, mas de graça, de benevolência, de um favor, de um presente unilateral. No cristianismo, por meio da graça, o ser humano recebe as condições para poder participar da vida de Deus


A QUESTÃO DO MAL


Se Deus criador é amor e tudo criou por amor, de onde vem o mal? Eis uma das grandes questões que inquietou Agostinho. Após ter caído vítima do maniqueísmo com suas explicações dualistas, Agostinho encontrou em Plotino (205-270), uma grande contribuição para resolver essa questão que o afligia. De acordo com Plotino, o mal não é um ser, mas uma deficiência e privação do ser.
O fragmento a seguir sintetiza a visão agostiniana sobre o mal: “Procurei o que era a maldade e não encontrei uma substância, mas sim uma perversão da vontade desviada da substância suprema __ de vós, ó Deus __ e tendendo para as coisas baixas: vontade que derrama as suas entranhas e se levanta com intumescência”. AGOSTINHO. Confissões. Livro VII. Trad. J. Oliveira e Ambrósio Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.190. (Os Pensadores).

Nesse fragmento, Agostinho aborda o mal com base na perspectiva metafísica. Por esse ponto de vista, não existiria o mal no Cosmo. Não haveria uma entidade má no mundo. O que existiria seriam seres em diferentes graus em relação a Deus, uns maiores, outros menores, até os ínfimos. Na verdade, tudo seria momento articulado de uma grande harmonia cósmica.

Do ponto de vista moral, o mal seria o pecado. E o pecado teria relação direta com a vontade corrompida, a má vontade, uma vontade desviada de sua finalidade boa. Naturalmente ou originariamente, a vontade tenderia para o Bem supremo, Deus. Contudo, dada a existência de muitos bens criados e finitos, a vontade teria se desviado de sua direção e se subvertido preferindo bens finitos e inferiores aos bens supremos. O pecado seria, portanto, uma escolha incorreta. Dessa forma, o mal moral seria uma aversão a Deus e uma conversão às criaturas. O mal se expressaria no mau uso desse bem. Dessa forma, o mal teria sua raiz na liberdade humana. Com essa ideia, Agostinho cria o polêmico conceito de pecado original, que entrou para a história do cristianismo.

Do ponto de vista físico, a maioria dos nossos males, como as doenças, sofrimentos e tormentos físicos e espirituais e a própria morte seria consequência do mal moral, decorrência do pecado. Nossa natureza primeira e originária seria a de seres feitos para a comunhão com Deus. O pecado não faria parte dessa natureza. O pecado seria uma ruptura que criamos como o nosso livre-arbítrio. Assim, o mal, sendo amor a si (soberba), tanto individualmente quanto comunitariamente, seria sempre uma corrupção ou da medida, ou da forma, ou da ordem natural. Nenhuma natureza seria má. O mal se manifestaria como desvio e carência do bem.

Em suma, a antropologia cristã concebe o homem como sendo criado à imagem do Deus criador, originariamente em comunhão com a graça de Deus. Contudo, o mau uso do livre-arbítrio e a pretensão do ser humano em querer para si a ciência do bem e do mal, que são atributos exclusivos da divindade, o teriam levado a pecar. Como fruto ou decorrência do pecado, o homem se encontraria decaído, impotente, expulso da comunhão divina. Encontrar-se-ia em uma condição histórica de afastamento da graça, no que consiste sua miserabilidade e fraqueza. Em razão disso, nada conseguiria por suas próprias forças. Somente mediante a graça de Deus seria possível o resgate e a salvação. Daí a expressão: “Se Deus quiser” .

O LIVRE-ARBÍTRIO

Para Agostinho, a razão pode conhecer o bem e a vontade pode rejeitá-lo, uma vez que a vontade é uma faculdade diferente da razão, com sua autonomia própria, mesmo que vinculada a ela. A liberdade seria uma característica que decorre da natureza racional do ser humano. Por sua faculdade interna, o homem seria livre e participaria decisivamente de seu destino, ajudado pela graça.
Ofator decisivo para afirmar a liberdade é, portanto, a faculdade do intelecto, que não existe nos demais seres da natureza. Graças ao conhecimento que tem das coisas, a vontade humana teria condições de fazer escolhas, e não seria obrigada a seguir os apetites e os impulsos que governam a vida dos demais seres. A partir dessas escolhas, a razão deveria buscar os melhores caminhos por meio dos quais melhor caminharia para o objetivo de sua vida. Dessa forma, a escolha voluntária implicaria a ideia de consciência, de razão. Por isso, essa vontade se torna o desejo da razão.
Enquanto a razão está na esfera do conhecer, a vontade está na dimensão do escolher, podendo inclusive escolher o oposto, o irracional. Esta é a razão fundamental pela qual os homens, no pensamento de Agostinho, podem se voltar contra a sua vida verdadeira e amar e deleitar-se com as coisas, transformando-as em fins, quando deveriam ser meios.
Isso vem sintetizado nessa belíssima afirmativa de Étienne Gilson:
“Pode-se obrigar o homem a fazer uma coisa, mas nada pode obrigá-lo a querer fazê-la. Ou há vontade, e não há violência, ou há violência e não pode mais haver vontade”.
GILSON, Étienne. O espírito da Filosofia medieval. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p.373.

10.2. AGOSTINHO e a relação Fé e a razão

AGOSTINHO e a relação Fé e a razão

No período patrístico, a filosofia aparece como subsidiária e subalterna da teologia, tendo a função de preparar a mente humana para acolher as verdades reveladas e buscar sua compreensão e explicação racionais. Nesse sentido, é muito esclarecedor o alerta do Apóstolo Paulo, em sua carta aos Colossenses:
“Vigiai para que ninguém vos apanhe na armadilha da Filosofia, esse vão engano fundado na tradição dos homens, nos elementos do mundo e não mais no Cristo [...], pois nele habita toda autoridade e todo poder”. Carta de Paulo aos Colossenses, 2,8-10. Bíblia. Trad. Ecumênica da Bíblia. São Paulo: Loyola, 1994.

Em termos de conhecimento, o pressuposto do qual Agostinho partia era o de que a verdade se encontrava em Deus. Deus era a fonte da verdade. Por isso, a condição para ter acesso à verdade era a fé, dom de Deus. A verdade divina era um mistério insondável.
A razão não conseguiria, de forma autônoma e independente, conhecer e compreender essa verdade. Assim, nessa perspectiva, o entendimento das verdades eternas pressupõe a fé. Esse pressuposto vem expresso na afirmativa do profeta Isaías, que diz: “Se não crerdes, não entendereis”.(Isaías, 7,9)
Segundo Agostinho, a base do conhecimento é a fé. Trata-se de crer para compreender. O ponto de chegada também é a fé. Trata-se de compreender para crer. Dessa maneira, na relação entre fé e razão aparece, inicialmente, a superioridade da fé em relação à razão. Essa superioridade transparece na afirmação agostiniana: “Creio tudo o que entendo, mas nem tudo que creio também entendo. Tudo o que compreendo conheço, mas nem tudo que creio conheço”. AGOSTINHO, De magistro. São Paulo: Abril Cultural,1973. p. 319.

De acordo com essa concepção cristã, a graça divina potencializa e a inspira para buscar razões, argumentos que auxiliem na compreensão e na divulgação da verdade acolhida na fé. Embora exista superioridade da fé, há também uma relação de complementaridade e de harmonia entre fé e razão. Agostinho aborda o fato de a inteligência e a fé serem duas formas de conhecimento, de olhar para o mesmo horizonte da verdade.

“A fé busca, o entendimento encontra; por isso o profeta diz: ‘se não crerdes, não entendereis’. Doutro lado, o entendimento prossegue buscando aquele que a fé encontrou; [...].Logo, é para isso que homem deve ser inteligente: para buscar a Deus”.
AGOSTINHO, A trindade. Trad. Agustino Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008. p. 481.

Com essa reflexão, Agostinho supera qualquer ideia que possa se referir à fé como algo ingênuo, irracional ou alienado. É preciso buscar a inteligibilidade daquilo no qual se crê. É fundamental que o conteúdo aceito na fé seja passível de receber as luzes da demonstração racional, sem contradição. Contudo, essa demonstração será sempre parcial e pequena diante da grandeza do mistério insondável de Deus e de suas verdades eternas.

A ILUMINAÇÃO COMO FUNDAMENTO DO CONHECIMENTO

Nas palavras de Agostinho:

“Porque as faculdades da alma são como que os olhos da mente: como as coisas que são certas no âmbito das ciências são tais como as coisas que são iluminadas pelo Sol para que possam ser vistas, assim como o é a terra e tudo o que é terreno; mas Deus é quem ilumina. Assim, eu, a razão, estou nas mentes como a visão nos olhos. Pois não é a mesma coisa ter olhos e olhar, como tampouco olhar e ver. O olho da alma é a mente isente de toda mancha do corpo, isto é, afastada e limpa dos desejos das coisas mortais, o que somente a fé, em primeiro lugar lhe pode proporcionar”.

(AGOSTINHO, Solilóquios. Livro I, capítulo VI, 12. Trad. Adaury Fiorotti. 4 ed. São Paulo: Paulus, 2010. P. 30 (Fragmento)


Celito Meier

10. 3. AGOSTINHO: a teoria do belo

AGOSTINHO: a teoria do belo

Profundamente marcado pelo racionalismo platônico, o pensamento do filósofo e teólogo Agostinho concebe a arte em sua função subsidiária, secundária, a serviço do ideal contemplativo. Nessa dinâmica, a arte poderia, inclusive, afastar o ser humano da vida ideal.
Uma expressão disso encontra-se na crítica que Agostinho faz aos espetáculos, por ser espaço e tempo de ilusões, de fingimentos, de máscaras. Por essas e outras razões, a profissão de comediante costumava não ser bem vista. Essa condenação ao teatro tem relação com a condenação a tudo o que é fictício. Nele encontra-se o choro falso, a alegria não verdadeira. Julgava-se o costumeiro uso de máscaras como não agradável a Deus. Além da ilusão, o teatro seria também expressão do ócio vazio, do tempo perdido.
Para Agostinho, existe uma grande tentação no olhar humano, que consiste em se concentrar nas belezas materiais e físicas. O perigo está em esquecer que elas são imperfeitas, pois são cópias, representações que existem tão somente por trazerem as marcas de uma beleza imaterial. Por isso, elas devem ser instrumento que remeta o olhar ao autor e criador de toda a beleza.
Na filosofia agostiniana, condicionada pela fé, toda a matéria que existe teria sido criada por Deus. E mesmo antes da criação, do tempo, ela já estaria eternamente na mente de Deus. Assim, toda a criação brotaria da gratuidade e da perfeição divina e traria, por isso, as marcas da beleza do criador.
Estando a beleza relacionada às marcas do criador, presentes em toda criação, a fealdade estaria relacionada à aversão, ao afastamento em relação a Deus. Quanto mais próximo a Deus, mais brilho; quanto mais distante, maior palidez.
Dessa forma, o deleite estético não se encontraria no agrado dos sentidos, mas na mente que reconhece no sensível a presença da beleza eterna. Essa seria a ordem a ser vivida, pois a procura da verdade e da beleza se equivaleriam. Bondade, beleza e verdade seriam correspondentes, encontradas no criador de toda forma de vida.

11. A FILOSOFIA MEDIEVAL: a controvérsia dos universais

A CONTROVÉRSIA DOS UNIVERSAIS

Contexto histórico

Devido ao recorte estabelecido para essa temática, escolhemos como representante da filosofia medieval, a filosofia cristã, conscientes de que essa opção traz perdas e ganhos. Nas palavras de Alfredo Storck: “Descrever a filosofia medieval é descrever um fenômeno complexo. Primeiramente porque não podemos pensar que a única filosofia produzida durante a Idade Média seja a cristã. O pensamento árabe e judaico não é menos importante nem menos profundo do que o pensamento cristão. [...] A filosofia, grega em sua origem, passou a ser romana e depois cristã. Os sírios transmitiram-na aos árabes e estes em boa medida aos judeus. Os cristãos novamente a recuperaram. Os especialistas designam esse movimento de transmissão de translatio studiorum, isto é, deslocamento dos saberes” (STORCK, Alfredo. Filosofia medieval. São Paulo: Jorge Zahar, 2003, p.7)

A idade Média abarca um período tão extenso que pode ser difícil caracterizá-la sem incorrer no risco da simplificação: são praticamente mil anos entre a queda do Império Romano no Ocidente (476), marco inicial da Idade Média, e a tomada de Constantinopla pelos turcos (1453), marco final do período. O primeiro período, também conhecido como Alta Idade Média, corresponde ao período de instabilidades que segue à queda do Império Romano, e abrange do século V ao X. O segundo período, ou fase final, que se estende do século XI ao século XV, vai da criação das universidades até o surgimento do humanismo renascentista

Na retomada da filosofia da antiguidade, a questão central gira em torno dos universais, ou seja, dos conceitos, das ideias, das essências que definem a identidade de um fim. Em suma, os universais referem-se à natureza dos gêneros e espécies. Os grandes questionamentos que esses estudiosos se propuseram são:
• Os universais existem? São entidades em si mesmas ou seriam entidades mentais? E, se existem de fato, são algo material, corpóreo, ou algo imaterial incorpóreo?
• São separados das coisas sensíveis ou estão a elas unidos? Poderiam existir separados das coisas ou existiriam somente nelas?


O realismo

A primeira abordagem dessa temática é encontrada na filosofia grega. A visão de Platão e de Aristóteles é definida como realismo. No realismo de Platão, gêneros e espécies seriam entidades com existência autônoma. As ideias seriam entidades reais, que existem em si e por si, constituindo o que seria o mundo inteligível, distinto e separado do mundo sensível, das aparências e dos fenômenos. Assim, por exemplo, a forma de um corpo particular belo participa da ideia universal de beleza, à luz da qual o particular é reconhecido é à qual é possível alcançar somente pelo intelecto e não pelos sentidos.
Para os realistas, de influência platônica, dentre os quais o maior representante foi Guilherme Champeaux (1070-1121), os universais são entes reais, subsistentes em si, ideias eternas e transcendentes que têm função de arquétipo, de modelo, paradigma em relação aos indivíduos concretos.

O nominalismo
Ao realismo de Guilherme se contrapõe o nominalismo de Roscelino de Compiègne (1050-1120). Guilherme de Ockham (1285-1347), por sua vez, adota o nominalismo, que implica uma crítica ao platonismo. Segundo o nominalismo, os universais, são palavras criadas, nomes, emissões de sons, sem nenhuma referência a algo objetivo, sem correspondência com um ente real. Assim, por um lado, o universal é a referência a um termo, e não a uma entidade real. Por outro lado, contudo, não se trata apenas de uma palavra, uma vez que na mente existe o correlato, o conceito, graças ao qual é possível fazer a referência.

O conceitualismo

Pedro Abelardo (1079-1142) foi um dos pensadores que desenvolveu essa concepção conceitualista. Em sua Lógica para principiantes, argumenta que os universais são conceitos que existem na mente e servem como instrumentos para relacionar objetos particulares.
Por exemplo, ao afirmar que “isto é um boi”, o conceito “boi” está unindo atributos ou qualidades comuns a objetos particulares.
Abelardo mantém a ideia de que os universais existem como pensamentos que têm referência no particular das coisas. O universal, para Abelardo, não é somente um som ou uma emissão de voz ,mas um sermo, uma palavra com significado, devido ao seu uso referencial; Nesse sentido, o conhecimento resulta desse processo de abstração, pois a distinção entre matéria e forma não existe na natureza. Mas é feita pelo intelecto.
Em suma, os conceitos universais como tais não são entidades reais ou metafísicas, como sustentavam os realistas, nem palavras vazias, como afirmavam os nominalistas. Para Abelardo, portanto, a existência dos universais está relacionada a uma intencionalidade do pensamento, a um pensamento que se volta para um objeto. Os universais são discursos mentais que fazem a ligação entre a mente e a realidade concreta.

Celito Meier

11.1. TOMÁS DE AQUINO: O livre-arbítrio e a teoria do direito.

TOMÁS DE AQUINO: O livre-arbítrio e a teoria do direito.

Tomás de Aquino (1221-1274) nasceu em Roccasecca, sul do Lácio, Itália. Fez seus estudos universitários em Nápoles, na Universidade recém fundada por Frederico II. Nesse espaço, conheceu a ordem religiosa dos dominicanos, que tinha uma forma de viver a vida religiosa mais voltada para as preocupações sociais e os debates culturais. Além desses motivos, havia outro que muito lhe atraía na ordem dominicana, o espírito liberto em relação aos interesses do mundo.

A liberdade

Tomás de Aquino, em seu tratado sobre o homem, na questão 83, discute o livre-arbítrio, em termos de liberdade do ato voluntário, enquanto escolha racional. Em conformidade com Tomás de Aquino, o livre-arbítrio decorre da própria racionalidade humana e sem este não seria possível sequer pensarmos em ética, em possibilidade de escolha e responsabilidade pessoal. Vejamos o texto a seguir:

“Como diz o Eclesiástico (15,14), ‘Deus criou o homem no começo e o entregou ao seu próprio arbítrio’, isto é, à liberdade de seu arbítrio. O homem possui livre-arbítrio, caso contrário seriam vãos os conselhos, as exortações, as ordens, as proibições, as recomendações e as punições. [...] Portanto, é necessário que o homem possua o livre-arbítrio pelo simples fato de ser racional. Como já foi dito, embora o apetite obedeça à razão, pode em alguns casos ir contra ela, desejando algo contrário ao que ela determina. É nesse sentido que o homem não faz o bem quando quer, ou seja, quando deseja contra a razão. (...) O livre-arbítrio é insuficiente se o homem não for movido e auxiliado por Deus”.
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Trad. Danilo Marcondes. In: MARCONDES, Danilo. Textos básicos de Ética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. p.65-66


A teoria do direito em Tomás de Aquino


LEI DIVINA ETERNA, LEI NATURAL, LEI HUMANA E LEI DIVINA POSITIVA.

Na reflexão de Tomás de Aquino, a inteligência divina tudo governa. A Ciência Divina, que tudo saberia, teria desejado manifestar-se eternamente, mediante a criação, e estabelecer comunicação com suas criaturas.
Retomando a reflexão inicialmente feita por Agostinho, Deus teria criado o tempo e, nele todas as criaturas. Os seres humanos teriam sido criados imagem e semelhança de Deus, livres e racionais.
No princípio, existiria uma vontade e lei divina eterna, que seria o plano racional de Deus, e estabeleceria a ordem do universo. Essa ordem existiria na mente de Deus, sabedoria que dirigiria todas as criaturas para a finalidade de sua criação. Dessa lei divina eterna derivariam as outras leis que constituem a teoria do direito de Tomás de Aquino.
Com o ato da criação dos seres humanos, Deus teria soprado na interioridade dos homens sua lei eterna. Dessa forma, existiria uma lei natural inscrita em nossos corações. As expressões dessa lei natural seriam nossas manifestações que dizem: “é proibido matar”; “não é correto roubar”; “deve-se fazer o bem e evitar o mal” etc. Contudo, as leis humanas se tornaram necessárias devido à fragilidade da humanidade e a possibilidade de mau uso do livre-arbítrio
Derivada da lei natural nasceria a lei humana, isto é, a lei jurídica, o direito positivo, que teria surgido para desviar os indivíduos do caminho das práticas do mal, da violência e das injustiças. Se a lei humana derivou da lei natural, não deveria haver contradição entre elas. Caso a lei humana fosse contrária à lei natural, ela deixaria de ser um guia para as nossas ações, se tornaria corrupção da lei natural e, portanto, nos afastaria do ideal prescrito por Deus a nós. Nesse sentido, se houvesse uma orientação humana contra a lei da natureza, essa orientação não deveria ser seguida. Acima da lei humana estaria, portanto, a lei divina.
Devido às corrupções e ao afastamento da vontade divina, inscrita na lei natural, Deus teria feito duas alianças fundamentais com os seres humanos na história. Da primeira aliança, teriam nascido as tábuas da lei, com Moisés. Contudo, as infidelidades e as corrupções humanas teriam continuado. Em momento posterior, Deus teria enviado seu próprio Filho, Jesus Cristo, ao mundo, para relembrar sua vontade aos humanos. Dessa passagem pela vida terrena, teriam surgido os evangelhos, os textos bíblicos de uma nova aliança de Deus com os homens. Existiria, assim, uma dimensão histórica, encarnada e revelada dessa lei divina, que se encontraria nos evangelhos. Essa lei divina positiva, escrita, teria por objetivo corrigir tanto as imperfeições da lei humana quanto as equivocadas interpretações da lei natural.

Celito Meier

11.2 Tomás de Aquino: A relação entre Fé e Razão e as Cinco Vias

Tomás de Aquino: A relação entre Fé e Razão e as Cinco Vias


Referindo-se à possibilidade de descobrir a verdade divina, Tomás afirma: “Existem a respeito de Deus verdades que ultrapassam totalmente as capacidades da razão. Uma delas é, por exemplo, que Deus é uno e trino. Ao contrário, existem verdades que podem ser atingidas pela razão: por exemplo, que Deus existe, que há um só Deus etc. Essas últimas verdades, os próprios filósofos as provaram por via demonstrativa, guiados que eram pelo lume da razão natural”. AQUINO, Tomás de. Suma contra os gentios. Trad. Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p.111.

A relação de complementaridade entre razão e fé não poderia admitir a contradição, uma vez que na raiz dessas duas formas de conhecimento se encontraria mesma fonte: Deus. E Deus seria incapaz de contradição, uma vez que é perfeição e a imutabilidade. Vejamos o trecho a seguir:
“Se é verdade que a verdade da fé cristã ultrapassa as capacidades da razão humana, nem por isso os princípios inatos naturalmente à razão podem estar em contradição com esta verdade sobrenatural. É um fato que esses princípios naturalmente inatos à razão são absolutamente verdadeiros [...], tampouco é permitido considerar falso aquilo que cremos pela fé, e que Deus confirmou de maneira tão evidente. [...]. Se Deus infundisse em nós conhecimentos contrários, a nossa inteligência seria com isso mesmo impedida de conhecer a verdade. Deus não pode fazer tais coisas”.
TOMÁS DE AQUINO. Súmula contra os gentios. Trad. Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 2000 p. 143-144 (Os pensadores).

Os caminhos da razão e da inteligência na busca de compreensão do Mistério de Deus estão muito bem ilustrados nas cinco vias que levam a razão humana a Deus.

Tomás de Aquino e as vias que levam a razão humana a Deus

Em Tomás, encontramos uma tentativa racional, uma busca filosófica de provar ou demonstrar a existência de Deus, recorrendo a cinco vias. Na Suma Teológica essa reflexão encontra-se no primeiro tratado, o Tratado de Deus, e nos artigos um, dois e três da segunda questão.
Será que a existência de Deus é autoevidente? Com esse problema, Tomás inicia o primeiro artigo. Seu procedimento consiste em analisar as teses favoráveis a essa questão e, em seguida, realizar a refutação. Em sua conclusão geral, Deus não é autoevidente, uma vez que nós não temos condições de conhecer a essência de Deus. Por essa razão, isso deverá ser demonstrado por meio daquilo que conhecemos.
No segundo artigo, Tomás discute se a existência de Deus pode ser demonstrada. Ele conclui que se pode demonstrar de Deus por seus efeitos. Para Tomás, pode-se conhecer o invisível por meio do visível. É um procedimento regressivo. Podemos argumentar com base no que para nós é secundário, ou seja, o efeito para a causa. Portanto, embora não possamos conhecer Deus em sua essência, podemos demonstrar sua existência, a partir dois efeitos que conhecemos.
Em terceiro lugar, Tomás aborda as cinco vias da demonstração da existência de Deus. Na primeira via, inspirado na reflexão que Aristóteles faz em sua obra Física, Tomás recorre à existência do movimento. O movimento consiste na passagem de potência a ato. Ora, esse movimento só é possível a partir de algo que esteja em ato. Assim, o ser que se encontra em movimento deve ter a causa desse movimento fora dele mesmo, assim como o motor movido deve ser movido por outro. Contudo, isso não pode ir ao infinito, se quisermos explicar o movimento. Por isso, deve haver o motor imóvel que tudo move: Deus.
Na segunda via, Tomás recorre à noção aristotélica de causa eficiente, de agente transformador. Nessa argumentação afirma que nada pode ser causa eficiente de si mesmo, pois para que isso fosse possível esse ser teria de ser anterior a si mesmo. Tomás afirma que algo é causa ou efeito, e aquilo que agora é causa deve ter sido efeito de outra causa. Contudo, novamente, isso não pode ir ao infinito. Deve existir uma causa primeira ou última: Deus.
A terceira via é conhecida como argumento cosmológico. Nela, Tomás distingue dois conceitos fundamentais: substancia e acidente ou necessidade e contingência. Nós existimos, mas poderíamos não existir; ou seja, não somos necessários, somos contingentes. Se nós existimos é porque existe aquele que é o necessário, o imutável, o ato puro, no qual não há movimento ou mudança, de quem tudo deriva por criação, a quem se deve nossa existência, Deus.
Na quarta via, Tomás recorre à ideia de perfeição e de graduação que existem nas coisas, que se referem, a maior ou menor, melhor ou pior, mais ou menos. Ora, essa comparação só é possível se pressupormos um termo de comparação que seja a perfeição absoluta, a beleza e a bondade absolutas. Essa ideia de bem absoluto e imutável encontra-se em Deus.
Finalmente, na quinta via, também chamada de argumento teleológico (que se refere a telos, finalidade), Tomás se concentra na ideia de movimento ordenado para um fim. Tudo existe para uma finalidade. As coisas caminham para um fim, não por acaso, mas por uma vontade absoluta, por um desígnio eterno, por um plano racional, por uma lei divina eterna.

Celito Meier

11.3. Arte e Estética na Idade Média

Arte e Estética na Idade Média

Durante a Idade Média, entre os séculos V e XV, a cultura ocidental foi marcada pela consolidação da filosofia cristã, por uma visão teocêntrica de mundo. Nesse contexto, a produção artística também sofreu as influências e os condicionamentos socioculturais. Nessa cultura, na qual o pensamento religioso exercia hegemonia, a arte era utilizada como meio de contemplação, adoração, instrução e catequese referente aos conteúdos da fé. Dessa forma, mosaicos, pinturas e vitrais são exemplos de espaços nos quais as pessoas tinham acesso à doutrina ou aos dogmas do catolicismo.
Um dado interessante para ser observado nas obras de arte desse período é a não identificação dos autores das obras de arte. Uma das formas de explicação disso pode ser a relação entre fé e ideologia religiosa, na qual Deus aparecia como o autor, servindo-se dos humanos, para realizar a sua vontade. A arte seria instrumento para captar e representar uma totalidade de sentido que existiria na criação realizada por Deus.
Por isso, os temas religiosos costumavam ser enfatizados nas formas de expressão artística mais comuns nesse período. Com efeito, para a mentalidade reinante, toda verdade e todo conhecimento provinha de Deus. Ele seria o autor da beleza da criação, princípio e fim de tudo que existe. A beleza da criação seria uma cópia da infinita beleza de Deus. Qualquer beleza somente seria assim porque provinha e participava da beleza eterna de Deus.

No pensamento de Tomás de Aquino, encontramos duas formas diferentes de artes: as artes liberais e as artes mecânicas. As artes liberais, terreno do artista, eram formadas por sete disciplinas, classificadas em dois grupos. O trivium abrangia a gramática, a dialética e a retórica. O quadrivium abarcava a aritmética, a geometria, a astronomia e a música. As artes servis ou mecânicas, relacionadas à atividade manual, estão no terreno da prática do artífice, do artesão.
No pensamento de Tomás de Aquino, o belo seria transcendental, estaria relacionado ao ser divino e à verdade eterna de Deus, onde habitaria a verdadeira harmonia. Com essa reflexão, o filósofo reforça a ideia de contemplação como valor. Dessa maneira, há no belo, além da sensibilidade, campo da estética, uma dimensão intelectual, de contemplação.
E qual é a ideia de beleza que domina toda a reflexão filosófica e cristã de Tomás de Aquino? Em seu pensamento, as condições ou os critérios que identificam a beleza implicam três elementos fundamentais: a integridade, proporção e claridade.
Quando falamos em algo ou alguém que é integro, a que estamos nos referindo? Para Tomás, estaríamos nos referindo a uma unidade, ao ser verdadeiro, não falso, sem oposição, sem divisão, sem vazios, algo perfeito. Ao falarmos em proporção, estaríamos nos referindo à medida, a perfeita correção entre as partes. No momento da contemplação aconteceria a fruição, o deleite espiritual. Na proporção o ser se revelaria como bom. Ao falar em claridade, Tomás concebe algo iluminado, uma manifestação de luz. É nessa clareza que apareceria a verdade do ser. Diante da verdade aconteceria o esclarecimento. Tudo ficaria claro na verdade.
Portanto, a unidade como integridade, a bondade como proporção e a verdade como clareza seriam as expressões do que é verdadeiramente belo. E essa beleza original encontraria somente em Deus, de onde derivariam os outros seres e as outras formas de beleza. Quanto mais belo fosse algo mais próximo do infinito se encontraria. Assim se explicaria a nossa alegria ao contemplarmos uma obra bela, pois ela nos remeteria ao ser transcendente.


Celito Meier

12. O HUMANISMO RENASCENTISTA: a autonomia e a dignidade humana


Na Renascença, como a palavra já nos diz, renasceu o olhar sobre os clássicos gregos, sobre o humanismo, inicialmente presente nos sofistas e em Sócrates. Dessa forma, o tema que esteve no centro das reflexões foi o tema da liberdade e da dignidade humana. A valorização da subjetividade e da autonomia do homem em relação aos domínios do religioso forma os fundamentos sobe os quais a nova filosofia esteve calcada.
A Renascença encontrou suas raízes na Idade Média e frutos na modernidade. Ela foi preparada no final da Idade Média e ela preparou a revolução científica que aconteceu na modernidade. Portanto, não falaremos nem em ruptura com a idade média nem afirmaremos que a Renascença seja modernidade.
Se na Idade Média o teocentrismo voltava-se para a contemplação dos ideais celestes, divinos e eternos, o humanismo renascentista deu ênfase à autonomia humana. A transição do teocentrismo para o humanismo foi uma revolução das ideias, uma profunda mudança na mentalidade. Durante o período medieval, a primazia e a superioridade da fé subordinaram os poderes da razão à verdade previamente acolhida como revelação divina.
Nessa transição renascentista, a centralidade se colocou na iniciativa humana, servindo-se da experiência e da razão, sem os necessários vínculos como a dimensão religiosa. Essa mudança começou a acontecer em todos os aspectos da vida, envolvendo uma nova maneira de conceber o ser humano, o conhecimento, a ética, a política, a estética e cultura.
Pico della Mirandola (1463-1494) é o pensador renascentista que melhor reflete sobre os temas da liberdade e da dignidade humana. Para Pico, a dignidade humana, por estar vinculada à liberdade, não é algo dado ou acabado. Considerando a natureza perfectível do ser humano, ele afirma que a pessoa tem o desafio e a tarefa de conquistar-se a si mesma, de autodignificar-se. Para alcançar essa meta, a filosofia seria indispensável.
Leia o texto a seguir:
“Não obstante tudo isso [a criação do Universo, pelo Supremo Arquiteto e Pai], ao término do seu labor, desejava o Artífice que existisse alguém capaz de compreender o sentido de tão grande obra, que amasse sua beleza e contemplasse a sua grandiosidade. [...]. Tomou então o homem, essa obra de tipo indefinido e, tendo-o colocado no centro do universo, falou-lhe nesses termos”:
“A ti, ó Adão, não te temos dado, nem um lugar determinado, nem um aspecto próprio, nem qualquer prerrogativa só tua, para que obtenhas e conserves o lugar, o aspecto e as prerrogativas que desejares, segundo tua vontade e teus motivos. A natureza limitada dos outros está contida dentro das leis por nós prescritas. Mas tu determinarás a tua sem estar constrito por nenhuma barreira, conforme teu arbítrio, a cujo poder eu te entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que, daí, tu percebesses tudo o que existe no mundo. Não te fiz celeste nem terreno, mortal nem imortal, para que, como livre e soberano artífice, tu mesmo te esculpisses e te plasmasses na forma que tivesses escolhido. Tu poderás degenerar nas coisas inferiores, que são brutas, e poderás, segundo o teu querer, regenerar-te nas coisas superiores, que são divinas”. [...]. No homem, o Pai infundiu todo tipo de sementes, de tal sorte que tivesse toda e qualquer variedade de vida. As que cada um cultivasse, essas cresceriam e produziriam nele os seus frutos”.
MIRANDOLA, Pico Della. A dignidade humana. Trad. Luis Feracine. São Paulo: Ed. Escala, 2006, p. 39-42.

Celito Meier

12.1. A RENASCENÇA E A DIVERSIDADE CULTURAL


O contexto de navegações que marca a Europa renascentista proporciona a experiência do contato entre diferentes povos. Uma das primeiras reações dos colonizadores foi a de julgarem-se superiores. Damos o nome de etnocentrismo a essa atitude. Os processos de dominação de um povo por outro foram realizados com base nessa pretensa superioridade.
Contudo, esse contexto alimentou também uma nova visão, muito bem refletida por Montaigne, que não se cansou em reconhecer e afirmar a diversidade humana com o valor.
Diante da diversidade cultural, Montaigne refletiu sobre a impossibilidade de estabelecer padrões universais e valores ideais para toda a humanidade e diferentes culturas. Assim, ele suspendeu o juízo sobre a melhor cultura ou o melhor valor. Isso aproxima Montaigne do ceticismo, que estabeleceu o prudente silêncio como expressão de sabedoria.
Na obra Os canibais, Montaigne faz um confronto entre a cultura européia (colonizadora) e a vida dos nativos que sofreram a invasão e foram chamados de bárbaros e selvagens pelos colonizadores. Vejamos alguns trechos dessa reflexão de Montaigne:


“Mas, voltando ao assunto, não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é natural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela ideia dos usos e costumes do país em que vivemos. Neste a religião é sempre a melhor, a administração excelente, e tudo o mais perfeito. A essa gente chamamos selvagens ou frutos que a natureza produz sem intervenção do homem.

Esses povos não me parecem, pois, merecer o qualitativo de selvagens somente por não terem sido senão muito pouco modificados pela ingerência do espírito humano e não haverem quase nada perdido de sua simplicidade primitiva. As leis da natureza, não ainda pervertidas pela imisção [mistura, intromissão] dos nossos, regem-nos até agora e mantiveram-se tão puras que lamento por vezes não as tenha o nosso mundo conhecido antes, quando havia homens capazes de apreciá-las.

Não me parecesse excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade [matar um prisioneiro e depois comê-lo...], mas o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos. Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto. E é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos ou entregá-lo aos cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos; e isso em verdade é bem mais grave do que assar e comer um homem previamente executado”.
MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Livro I. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Nova cultural, 1991, p. 99-101.

Celito Meier

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12.2. RENASCENÇA: EXPERIÊNCIA E RACIONALIDADE


Leonardo da Vinci (1452-1519) é um representante por excelência da genialidade humana. A complexidade de sua inteligência e as suas habilidades em arte marcaram época. Para Leonardo da Vinci, por meio da experiência e da razão, o ser humano tem a missão de desvendar a lógica do mundo, estudar sua linguagem matemática. Portanto, a autoridade não mais será uma figura humana, mas o argumento fundamentado na experiência. Com essa visão, o espírito renascentista prepara e lança as raízes da ciência moderna.

O conceito de experiência, como aparece em Leonardo da Vinci, nunca será uma simples observação. Para que aconteça a experiência, será fundamental articular teoria e prática, observação e estudos matemáticos. O pressuposto básico é o de que todos os fenômenos naturais têm uma razão de ser, que deverá ser descoberta.
A analogia que Leonardo estabelece em termos de conhecimento seguro é a imagem de um timoneiro que entra em um navio com leme e bússola. A ausência desses elementos seria como uma experiência sem a referência teórica, sem ciência. Assim, será a ciência que deverá conduzir a experiência.

Leia o texto a seguir

“Nenhuma investigação humana pode dizer-se verdadeira ciência, se ela não passar pelas demonstrações matemáticas: e se disseres que as ciências, que principiam e terminam na mente, têm verdade, isto não se concebe, mas se nega por muitas razões; ao contrário, em tais discursos mentais não ocorre experiência, sem a qual nada dá certeza de si. (...). A ciência é mais útil quando seu fruto é mais comunicável e, ao contrário, menos útil quando é menos comunicável. (...). Todavia, parece-me que sejam vãs e cheias de erros as ciências que não nasceram da experiência, mãe de toda certeza, e que não terminam em experiência conhecida, isto é, que sua origem, ou meio, ou fim, não passam por nenhum dos cinco sentidos. E se duvidamos da certeza de cada coisa que passa pelos sentidos, com muito maior razão devemos duvidar das coisas rebeldes a esses sentidos, como a ausência de Deus e da alma e coisas semelhantes, pelas quais sempre se disputa e briga. E verdadeiramente ocorre que sempre onde falta a razão suprem os gritos, o que não acontece nas coisas certas”.

(DA VINCI, Leonardo. Tratado da Pintura. In: REALE, G., ANTISERI, D. História da Filosofia: do humanismo a Descartes. Trad. Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004. p. 127-128. v. 3.

DO MODELO ARISTOTÉLICO-PTOLOMAICO AO COPERNICANO

A concepção aristotélica de Cosmo trazia a noção de ordem, de um todo organizado, no qual cada elemento que o constituía possuía o seu lugar. No centro estaria o elemento mais pesado, a terra. Junto à terra estaria o elemento água, também pesado. Na ausência de uma força externa aplicada sobre esse elemento, ele tenderia a se mover em direção ao centro. O elemento menos pesado, como a água, e os elementos mais leves como o ar e o fogo formariam camadas concêntricas em torno, movendo-se espontaneamente para cima, afastando-se do centro.
Nesse modelo de pensamento, existiria uma profunda distinção entre Terra e céu, a Terra, por ser matéria, estaria sujeita às mudanças, às transformações. Em contrapartida, haveria os corpos celestes, que seriam esferas perfeitas e imutáveis, pois sua constituição não viria dos quatro elementos terrenos, mas de um quinto elemento, o éter. Esses corpos celestes apresentariam movimentos circulares em torno da Terra, oriundos de inteligências que estariam subordinadas a uma primeira e suprema inteligência, fonte de todo universo.
O pensamento cosmológico e astronômico do mundo ocidental ficou marcado, por quase catorze séculos, pela concepção de Aristóteles (384-322 a.C), que foi retomada por Claudio Ptolomeu (90-168). A estrutura desse modelo aristotélico-ptolomaico foi adotada durante toda a Idade Média ocidental, de natureza cristã, com uma mudança significativa: transformou o mundo eterno em criado pela vontade divina
Uma das primeiras reflexões na origem dessa desconstrução do modelo cosmológico de Aristóteles ocorre na Renascença, no pensamento de Nicolau de Cusa (1401-1464), segundo o qual o Universo não possuiria um centro. Por isso, também, os corpos não poderiam ocupar lugares hierárquicos. Nas palavras de Nicolau de Cusa:

“Consequentemente, se considerarmos os diversos movimentos dos orbes celestes, constataremos que é impossível para a máquina do mundo possuir qualquer centro fixo e imóvel, seja esse centro a terra sensível, o ar, o fogo ou qualquer outra coisas”.

DE CUSA, Nicolau. “A douta Ignorância”. Livro II. In: KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao Universo infinito. Trad. Donaldson M. Garschagen. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 14

Será com Copérnico (1473-1543) que o modelo cosmológico-ptolomaico sofrerá seu mais significativo golpe, ao propor a teoria heliocêntrica. De acordo com Copérnico, o Sol ocuparia o centro do Universo e os demais planetas girariam ao seu redor. Contudo, Copérnico ainda não falava em Universo infinito. A ideia de hierarquia e de valor ainda estava presente. O Sol, sendo visto como a fonte de toda luz, recebia maior nobreza. Nas palavras de Copérnico:

“Mas no centro de tudo situa-se o Sol. Quem, com efeito, nesse esplêndido templo colocaria a luz em lugar diferente ou melhor do que aquele de onde ela pudesse iluminar ao mesmo tempo todo o templo? [...] Assim, como que repousando no trono real, o Sol governa a circundante família de astros”.
(COPÉRNICO, Nicolau. “Das revoluções dos orbes celestes”. Livro I. In: KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao Universo infinito. Trad. Donaldson M. Garschagen. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 30).

Giordano Bruno (1548-1600) embora tenha acolhido a visão de Copérnico, deu um novo e decisivo passo, ao romper com a ideia de Universo finito, e propor a infinitude do Universo. O mundo seria infinito, infinito seria o movimento, eterna seria a mutação de todas as coisas. Nessa concepção, nada morre, tudo se transforma.

Para Giordano, embora haja um princípio supremo, causa de todas as coisas. Esse elemento primordial não poderá jamais ser conhecido. Contudo, esse princípio que anima o mundo está presente em todas as coisas. Essa visão de Giordano Bruno foi classificada como panteísta, significando com isso que o princípio motor do mundo não estaria fora dele, mas em seu próprio interior. Com esse posicionamento ele se afasta da posição oficial da Igreja Católica, vinculada ao modelo aristotélico-tomista, segundo o qual Deus seria o motor imóvel, a causa perfeita e absoluta de tudo, que teria existência separada de suas criaturas.

Celito Meier
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12.3. RENASCENÇA POLÍTICA: MAQUIAVEL E A AUTONOMIA DA POLÍTICA.

O pensamento político de Nicolau Maquiavel (1469-1527) inaugura a política moderna, pois seu pensamento afasta-se da forma de fazer política que era predominante até então. Ora, a política que se praticava era atrelada à dimensão religiosa, vinculada à ética cristã. Por isso, em Maquiavel encontramos uma autonomia da política, pois não haverá outros critérios acima da política como referência para as ações. Essa nova realidade ficou conhecida com a expressão “laicização do estado”, como a mentalidade em um processo de secularização da consciência; ou seja, a forma de pensar afasta-se da dimensão sagrada, divina e eterna e se desloca para o âmbito secular, histórico, temporal.
Pra compreender o pensamento de Maquiavel, especialmente de suas ideias desenvolvidas na obra O príncipe, será preciso considerar o contexto histórico em que seu posicionamento surgiu. No tempo de Maquiavel, a Itália encontrava-se dividida. Os principais Estados eram: o Reino de Nápoles, os Estados Pontifícios, O Estado Florentino, o Ducado de Milão e a República de Veneza. Eram constantes os conflitos. Nesse contexto, Maquiavel alimentou a esperança e o projeto de unificar a Itália, para fortalecê-la contra ameaças externas e construir a paz interna.

O realismo e a verdade efetiva

Ao ler O príncipe, é importante observar que essa obra não deve ser entendida sob a perspectiva de uma ética universalista, mas sob a óptica de uma situação histórica na qual a Itália se encontrava, e para a qual se faziam necessárias algumas orientações efetivas.

A natureza dos textos de Maquiavel considera a necessidade que a cena política solicitava. O que muda radicalmente em Maquiavel é o fundamento da política, do poder, do governo e do Estado. O trecho a seguir ilustra essa ideia. Maquiavel usa a expressão “verdade efetiva”, para chamar a atenção para os efeitos da ação.

“Todavia, como é meu intento escrever coisa útil para os que se interessarem, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade pelo efeito das coisas do que pelo que delas se possa imaginar. [...]. Vai tanta diferença entre o como se vive e o modo por que se deveria viver, que quem se preocupar com o que se deveria fazer em vez do que se faz aprende antes a ruína própria do que o modo de se preservar [...]. Assim é necessário a um Príncipe, para se manter, que aprenda a poder ser mau e que se valha ou deixe de valer-se disso segundo a necessidade”.
(MAQUIAVEL. N. O príncipe. Trad. Livio Xavier. São Paulo: Folha de São Paulo, 2010, p. 36).

Maquiavel insiste que será o olhar atento à circunstância que conseguirá pensar na melhor ação para o momento. Haverá momentos em que as ações deverão ser mais suaves e marcadas pela bondade. Em contrapartida, haverá situações que exigirão ações enérgicas, como “remédios amargos para males amargos”.
Nesse realismo político, toda escolha do príncipe deve submeter-se ao critério da funcionalidade, tendo em vista a eficácia do seu governo, a estabilidade do Estado, na preservação da ordem e da paz social. Maquiavel reforça a concepção de soberania do poder do Estado e nunca da pessoa do príncipe, ou do governante, que é passageira.
A metodologia que Maquiavel escolheu para escrever O príncipe consiste em recolher exemplos de governos e governantes extraídos da história, mostrando exemplos que deram certo e outros que fracassaram. Com esse recurso, ele reforça o seu posicionamento, segundo o qual a realidade concreta seria fundamento para a escolha das ações políticas.
Para Maquiavel as cidades são marcadas pela disputa pelo poder. Em termos genéricos, existiriam três grupos humanos: os que estão no poder e querem manter-se; os que não estão no poder, mas querem lá estar; e o povo que não quer ser oprimido. De modo mais resumido, diria Maquiavel que são dois os grupos: os poderosos que querem dominar, e o povo que não quer ser oprimido.
Com esse conhecimento da realidade política como efetivamente se dá, o príncipe que pretende manter o poder, perceberá que uma das ações políticas mais importantes será conseguir limitar a realização do desejo de opressão dos poderosos contra o povo, pois o ódio que resulta da opressão desmedida levaria o governante à ruína. Para Maquiavel, o príncipe deve antes procurar se aliar ao povo, que não quer ser oprimido, do que aos nobres, que sempre deseja tomar o poder. Esse é um elemento fundamental na filosofia política de Maquiavel, que deve ser levado em conta na escolha da melhor ação.

A virtude política

Em Maquiavel, a virtude do Príncipe nada tem a ver com a virtude cristã. Ao contrário, terá que ser marcada por uma habilidade política muito especial, a competência de saber adaptar-se às situações e agir para o bem do povo, para a ordem social. Assim, a virtude é uma forma de astúcia política, que implica saber separar o que vale na esfera privada, nas convicções pessoais e o que vale na esfera pública, sob a ótica da responsabilidade. No trecho a seguir, Maquiavel esclarece quais são os critérios da ação de um príncipe virtuoso.

“Cada príncipe deve desejar ser tido como piedoso e não como cruel: apesar disso, deve cuidar de empregar convenientemente essa piedade. [...]. Não deve, portanto, importar ao Príncipe a qualificação de cruel para manter seus súditos unidos e leais, porque, com raras exceções, é ele mais piedoso do que aqueles que por muita clemência deixam acontecer desordens, das quais podem nascer assassínios ou rapinagem”. (MAQUIAVEL.N. O príncipe.Trad. Livio Xavier. São Paulo: Folha de São Paulo, 2010. Cap. XVII. p. 38).

Com base nesse fragmento, percebemos que a virtude é mediação para a manutenção do poder a serviço da ordem social, preservando o Estado, aliando-se ao povo e combatendo o desejo de dominação e opressão que caracterizava os poderes. Dessa forma, mesmo que seja possível alcançar o poder por outros meios, como a fortuna ou a força, somente a virtude mantém o poder. Nessa concepção terá virtú o governo que reunir a capacidade de agir de acordo com as circunstancias. Assim. A flexibilidade será uma das marcas da virtude polític

A Relação entre virtù e fortuna

Na teoria política maquiaveliana, é fundamental compreender bem a relação entre virtù e fortuna. Nessa abordagem, Maquiavel demonstra que a vida de um Estado ou de uma pessoa está sujeita a mudança inesperadas, pois há uma imprevisibilidade na história do ser humano. E a relação entre virtude e fortuna acontece nesse contexto.

A fortuna representaria a mudança dos tempos e a virtù seria a capacidade e a habilidade racional e estratégica do ser humano em agir, ao perceber a mudança em curso. Com isso, ele não ficaria submisso ou sujeito à fortuna, mas garantiria a estabilidade no exercício do poder.
Diante dessa realidade, Maquiavel entende que a vida das pessoas está em parte em suas próprias mãos, nas mãos da virtude, e em parte depende das eventualidades. A fortuna pode provocar eventos imutáveis contra os quais fica estéril qualquer ação. Nesse caso, a virtude solicitaria a adaptabilidade para, reconhecendo as exigências da nova situação, pensar nas melhores estratégias de ação.
E como uma pessoa pode agir com virtù? Maquiavel responde indicando o estudo da história dos povos antigos, pois desde o início dos tempos as mesmas paixões dos seres humanos estariam presentes. Leia o fragmento no qual Maquiavel se refere a isso.

“Quem considere as coisas presentes e as antigas verá facilmente que são sempre os mesmos desejos e humores em todas as cidades e em todos os povos, e que eles sempre existiram. De tal modo que quem examinar com diligência as coisas passadas facilmente preverá as futuras, em qualquer república, prescrevendo os remédios que foram usados pelos antigos, pensará em novos, devido à semelhança dos acontecimentos”. (MAQUIAVEL. Nicolau. Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo: Martins Fontes, p.121).

A virtude política implica as possibilidades de recurso à astúcia e à força, para a manutenção do Estado. No texto a seguir, Maquiavel usa a metáfora do leão e da raposa, para simbolizar duas estratégias diferentes de ação, quando a ação com base na lei não é suficiente. Nas palavras de Maquiavel:
“Deveis saber, portanto, que existem duas formas de se combater: uma, pelas leis; outra, ela força. A primeira é própria do homem; a segunda, dos animais. Como, porém, muitas vezes, a primeira não é suficiente, é preciso recorrer à segunda. Ao Príncipe torna-se necessário, porém, saber empregar convenientemente o animal e o homem. [...] E uma sem a outra é a origem da instabilidade. Sendo, portanto, um príncipe obrigado a bem servir-se da natureza da besta, deve dela tirar as qualidades da raposa e do leão, pois este não tem defesa alguma contra os laços, e a raposa, contra os lobos. Precisa, pois, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos. Os que se fazem unicamente de leões não entendem de Estado. Por isso, um príncipe prudente não pode nem deve guardar a palavra dada quando isso se lhe torne prejudicial e quando as causas que o determinaram cessem de existir. Se os homens todos fossem bons, esse preceito seria mau. Mas, dado que são maus, e que não a observariam a teu respeito, também não és obrigado a cumpri-la para com eles”.

MAQUIAVEL.N. O príncipe.Trad. Livio Xavier. São Paulo: Folha de São Paulo, 2010. p. 40. cap. XVIII.

Celito Meier

12.4. Maquiavel e a liberdade republicana

A liberdade republicana

Pensando na melhor forma de governo, Maquiavel afirma que há três espécies de governo e os que pretendem estabelecer a ordem numa cidade devem escolher, dentre essas três espécies, a que melhor convém a seus objetivos: o monárquico (podendo degenerar no despotismo), o aristocrático (podendo degenerar na oligarquia) e o popular (podendo degenerar na permissividade). As constituições simples sucedem-se muito rapidamente. Seu defeito é a instabilidade. As constituições das três formas de governo “ boas” se corrompem com tal facilidade que “podem também tornar-se perniciosas”.
Para Maquiavel, somente os regimes que contam com a efetiva participação do povo em suas instituições são virtuosos. Sem o apoio do povo, não há poder que dure. Com base nessas reflexões, tornou-se hoje consenso entre os estudiosos inserir o pensamento de Maquiavel na tradição republicana, que envolve a presença da liberdade cívica, sob o regime da lei. Esse seria o bem comum.
O cidadão não deve apenas não ser reprimido, ele deve ter assegurada a sua liberdade. É essa necessidade de garantia da liberdade que vincula Maquiavel ao republicanismo. A liberdade republicana pressupõe a possibilidade de participação na vida pública, nas instituições públicas; Trata-se, portanto, de uma ideia de liberdade positiva, uma vez que o povo, livre das opressões, poderá se envolver diretamente na governabilidade da cidade.
Nessa reflexão sobre a liberdade positiva, percebe-se a ênfase na valorização da vida ativa, ,em contraposição ao ideal da vida contemplativa, que predominou durante muito tempo, especialmente no contexto medieval. O foco agora está na liberdade de manifestação na esfera pública.


Celito Meier

12.5. O RENASCIMENTO ARTÍSTICO


Na obra “Monalisa”, de Leonardo da Vinci, percebemos as ideias de movimento e de inconstância, desde o curso sinuoso das águas do rio até a expressão de Monalisa, conhecida também como Gioconda, que em italiano significa “a sorridente”. Na técnica do sfumato, utilizada na obra, de variação de luz e cor, transparece a indeterminação, ideia também muito valorizada no humanismo da Renascença, que se relaciona com o individuo racional e livre, sujeito de autodeterminação

Na passagem da Idade Média para a Renascença, encontramos a era do gótico, que marcou um novo período na história da arte. A arte gótica, conhecida como arte das catedrais ou arte das ogivas, surgiu na Franca, em fins do século XII.
Com um realismo muito alegre e colorido, os pintores góticos, em seus afrescos e painéis, superaram a rigidez dos quadros medievais e concentram-se mais na ideia de movimento, um dos traços muito valorizados na estética renascentista. Um dos traços do realismo gótico será a observação e a descrição de cenas do cotidiano. O pintor gótico ainda trazia forte sentimento religioso, presente em sua expressão artística.
Diferentemente da arte medieval, na qual predominava o traçado reto, a arte renascentista, com os conhecimentos da matemática, valorizava a harmonia, o equilíbrio e a perspectiva. Em contexto no qual se pensa o mundo não mais como um todo ordenado hierarquicamente, mas como universo infinito, a pintura renascentista inventa a perspectiva, capaz de pensar a infinitude do universo. Não faltam nomes de consagrados artistas renascentistas. Entre eles, citamos Donatello (1386-1466), Sandro Botticelli (1445-1510), Leonardo da Vinci (1452-1519), Michelangelo Buonarroti (1475-1564) e Rafael Sanzio (1483-1520).
A ciência influenciou a arte e a arte abriu novas perspectivas para a ciência. A exatidão do cálculo inspirou o projeto estético do artista renascentista, por conseguir maior realismo em suas expressões. Sendo assim, entre as características singulares da arte renascentista encontramos a busca da perfeição, que já se fazia presente na estética da cultura Greco-romana. Esse traço é expressão do humanismo, da valorização do ser humano, que se tornou o centro das referências.
Assim, o renascimento cultural foi muito mais do que uma volta à herança clássica. Muitos foram os progressos realizados na arte, na literatura, nas ciências, na filosofia etc. Em todas as formas de expressão artística, seja na arquitetura, na pintura, na escultura, os artistas exaltam a racionalidade, a liberdade e a dignidade humanas.

Celito Meier

12.6. O junsaturalismo: direito natural e o direito positivo

O junsaturalismo


No início do século XVII, a cultura ocidental vivia a formação da teoria do direito natural. Os principais representantes dessa teoria, também chamada de jusnaturalismo, são Alberico Gentili (1552-1608) e Hugo Grotius (1583- 1645).
Recordando a teoria do direito de Tomás de Aquino, na Idade Média, podemos encontrar os elementos que formarão a base do jusnaturalismo, na Renascença. De acordo com essa teoria, os homens teriam direitos naturais.
Para alguns pensadores, esses direitos viriam de Deus que, no ato da criação, teria inscrito nas criaturas a sua lei. Nessa concepção, a lei natural teria sido instituída por Deus, no coração de suas criaturas. Sendo o direito natural de ordem divina, ele traria a marca da universalidade e da imutabilidade, pois a perfeição divina teria deixado sua marca nele.
Outros autores lêem a lei natural sem referência a uma divindade, a um criador. Os indivíduos, por meio da razão, teriam condições para conhecer os princípios dessa lei natural. Assim, natureza e razão seriam os fundamentos do direito natural.
Entre os direitos naturais, costumam ser destacados os direitos à vida, à felicidade, à propriedade, à liberdade, à dignidade. Com esse reconhecimento, estaria estabelecida a natural igualdade de todos os seres humanos. Todos teriam os mesmo direitos. São livres e iguais.
Dessa maneira, notamos que, historicamente, o jusnaturalismo apresenta diferentes visões, mas todas reconhecem um elemento comum: normas logicamente anteriores e eticamente superiores às leis criadas pelos seres humanos em sociedade.

O jusnaturalismo, que reivindica a existência de uma lei natural, eterna e imutável, distinta do sistema normativo fixado por um poder institucionalizado (Direito Positivo), engloba as mais amplas manifestações do idealismo que se traduzem na crença de um preceito superior advindo da vontade divina, da ordem natural das coisas, do instinto social, ou mesmo da consciência e da razão do homem
WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia. Estado e Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 124

A existência da igualdade natural seria a condição fundamental para haver um possível pacto ou contrato entre os homens. Assim, o jusnaturalismo estaria na base do contratualismo moderno. Este direito natural, que antecede o direito criado pelos seres humanos, conhecido como direito positivo, teria validade em si mesmo. Seria anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito, é ele que deveria prevalecer. Assim, o jusnaturalismo é uma doutrina que não deve ser confundida com o atual "positivismo jurídico", para o qual só há um direito, aquele estabelecido pelo Estado.

Celito Meier

13. 1. O CONTRATUALISMO EM THOMAS HOBBES

13. A POLÍTICA MODERNA:

31.1. O estado natural e o pacto social em Hobbes


O Estado natural


Thomas Hobbes (1588-1679) nasceu em uma aldeia inglesa, Westport. Sua mãe, devido ao terror que lhe causou a notícia da chegada da Armada Invencível, deu-o à luz prematuramente. Esse acontecimento vai marcar toda a trajetória de Hobbes. O contexto da vida política de Hobbes é marcado por movimentos revolucionários. A título de exemplo, encontramos a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), envolvendo várias nações européias; na Inglaterra, Cromwell comandou a revolução puritana que destronou e executou o rei Carlos I (1649).
A partir do século XVI, as monarquias absolutistas constituíam um regime político difundido por toda a Europa. No campo intelectual, buscava-se fundamentar e justificar tal poder ilimitado dos monarcas. Uma resposta tradicional era: o poder real havia sido concedido pelo próprio Deus. Por isso, a autoridade real seria perpétua e absoluta, não havendo necessidade de justiçar suas atitudes. Se o rei morresse, seu poder, oriundo de Deus, continuaria para além do corpo do monarca. O poder seria transmitido ao seu sucessor.
Em meados da década de 1640, havia um fervoroso debate entre realistas, parlamentaristas e radicais sobre o conceito de soberania. De acordo com a principal doutrina dos parlamentaristas, o sujeito da soberania é o povo. Ao criticar a tese da soberania popular, Hobbes estabelece uma importante distinção entre os poderes da soberania e os poderes do povo.
Conforme veremos adiante, o verdadeiro detentor da soberania para Hobbes não seria nem o povo, nem a pessoa natural do rei, mas uma pessoa jurídica e abstrata, conhecida com Estado. Em suas críticas aos parlamentaristas, Hobbes fazia frente também às posições de determinadas correntes radicais, principalmente as que afirmavam a soberania popular e seu direito de resistência.
Antes de enveredarmos no horizonte da política, da sociedade civil, vamos considerar a hipótese de um estado natural no qual os seres humanos teriam vivido.
O ser humano, em seu estado natural, objetivando a sua preservação, tem a liberdade de usar seu próprio poder da maneira que quiser. Por isso, seguindo a luz de sua própria razão, fará tudo aquilo que seu julgamento racional lhe indicar ser o modo adequado de ação, tendo em vista o objetivo primeiro, que é a defesa de sua vida. E nisso os indivíduos são, naturalmente, iguais. Trata-se de seu direito de Natureza.

Para Hobbes, todos os homens são iguais em suas paixões, em seus amores e em suas aversões, em seus apetites ou desejos; ou seja, todos são movidos pelos mesmos fins: a aproximação ao objeto desejado e o afastamento daquilo que é indesejável. Nesse estado natural, Hobbes denomina como “bom” aquilo que se busca e “mau” aquilo a que se tem aversão. Não são, portanto, juízos morais, nem descrições de algo que seja “bom” ou “mau” em si mesmo, mas apenas nomes dados aos nossos anseios e às nossas aversões.

Direito de natureza e lei de natureza


Hobbes distingue direito de natureza e lei de natureza. No direito de natureza estaria a liberdade de usar o próprio poder da maneira que melhor julgar para garantir sua preservação. Na lei de natureza constaria o preceito racional que proibiria qualquer pessoa de atentar contra a própria vida. No âmbito do direito está a liberdade; no âmbito da lei está a obrigação. É muito importante percebermos que o critério fundamental de ação no estado natural deve atender ao princípio de autopreservação. Sendo ele natural, ele é conforme a razão, conforme a lei de natureza. Considere o texto a seguir


O pacto social em Hobbes


Vimos que no estado natural, a igualdade dos seres humanos está em serem eles inimigos, uma vez que buscam a satisfação pessoal em tudo, o que implica na destruição de qualquer ameaça. Esse estado natural de guerra de todos contra todos, que estaria na raiz da busca por segurança, por autopreservação, seria também fonte de muita insegurança.
Segundo a concepção de Hobbes, buscando a mesma autopreservação, os seres humanos teriam seguido a lei de natureza, obedecido à razão e buscado uma solução para afastar o medo da morte violenta e garantir a segurança e a autopreservação. Dessa forma, nascem as regras racionais fundamentais para a vida em sociedade
Na obra O Leviatã, Hobbes evidencia o quanto o pacto implica e significa uma renúncia, uma transferência de direito natural, com o objetivo de garantir algo que falta no estado natural. Essa transferência ou renúncia ao direito de tudo poder fazer só terá condições de assegurar a autopreservação e a paz se houver um poder impessoal, comum a todos e acima de todos.
Considerando o instinto de auto-conservação, Hobbes, na obra Leviatã, cita 19 regras fundamentais para a vida social. Habitualmente, são recordadas somente as três, que são as principais. Essas regras não são de Hobbes, mas são as que ele reconhece na natureza humana, e as defende, pois percebe que são coerentes e fundamentadas na lei natural, permeadas por racionalidade. Considerando que tornam a vida em sociedade possível, elas adquirem um valor moral e político.
A lei primeira e fundamental ordena que o homem se esforce por buscar a paz. "É preceito ou regra geral da razão que cada homem deva se esforçar pela paz quando tem esperança de obtê-la e, quando não puder obtê-la, procure e use todos os recursos e benefícios da guerra”. Assim, temos, em primeiro lugar, a busca da paz, e em segundo lugar, a síntese do direito natural, que é defender-se com todos os meios possíveis.
Para garantir a paz é preciso que exista uma renúncia. E essa renúncia se faz a um direito natural. Trata-se do direito natural a todas as coisas Se não houver essa renúncia, não haverá garantia de paz. Por isso, a segunda lei assim determina: que se renuncie ao direito sobre tudo, ou seja, àquele direito que se tem no estado natural, que é precisamente o direito que desencadeia todos os conflitos.
A terceira lei impõe, uma vez que se tenha renunciado ao direito a tudo, que se cumpram os acordos feitos. E daí nascem a justiça e a injustiça (justiça é manter os acordos feitos, injustiça é transgredi-los).
Em si mesmas, essas leis não bastam para constituir a sociedade, já que também é preciso um poder que obrigue os homens a respeitá-las: sem a espada que lhes imponha o respeito, os acordos não servem para atingir o objetivo a que se propõem.
No fragmento a seguir, Hobbes fala da necessidade do pacto:

“O único caminho para erigir um poder comum que possa estar em condições de defender os homens da agressão estrangeira e das injúrias recíprocas e, assim, tranquilizá-los de tal modo que possam se nutrir e viver satisfeitos com sua própria indústria e com os frutos da terra, é o de conferir todos os seus poderes e toda a sua força a um homem ou a uma assembleia de homens que possa reduzir todas as suas vontades, por meio da pluralidade das vozes, a uma só vontade. [...]. Isso é mais do que o consenso ou a concórdia; é uma unidade real de todos em uma só pessoa, feita pelo pacto de cada homem com todo outro homem, de tal modo que, se cada homem dissesse a todo outro homem: eu autorizo e cedo o meu direito de governar-me a mim mesmo a esse homem ou a essa assembleia de homens, com a condição que tu lhe cedas o teu direito e autorizes todas as suas ações da mesma forma. Feito isso, a multidão assim unida em uma só pessoa é chamada de Estado, em latim civitas. [...] Àquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano. Todos os restantes são súditos”.

HOBBES, Thomas. O Leviatã. Capítulo XVII. Trad. João Paulo M. e Maria Beatriz N.S . São Paulo: Nova Cultural, 1999, 141-143.


Celito Meier




13.2. O CONTRATUALISMO em JOHN LOCKE

O estado natural e o pacto social em Locke


John Locke (1632-1704) foi médico e pertencia a uma família de burgueses comerciantes, tendo ocupado diversos cargos políticos e opondo-se à monarquia absolutista. Tornou-se conhecido como teórico do liberalismo. Diferentemente de Hobbes, John Locke não descreve o estado natural como um estado de guerra de todos contra todos. Afirma que existe uma natural sociabilidade, na dimensão pré-civil.
Esse estado natural no qual o ser humano se encontra, embora seja um estado pré-político, ou pré-civil, não é um estado pré-social, pois há uma convivência inicial. Em liberdade e igualdade: cada indivíduo dotado das mesmas faculdades por Deus, tem tanto poder quanto o outro e está submetido apenas à lei natural, que lhe ordena conservar-se e, tanto quanto possível, preservar a humanidade.
Essa preservação implica a subsistência e a propriedade de si e de seus bens. No Estado de Natureza, os indivíduos têm a liberdade de dispor de sua pessoa e de suas propriedades dentro dos limites da lei natural. Sobre a lei natural, devemos observar os princípios que a definem: liberdade, disposição da pessoa e propriedade.
Locke afirma que o estado de guerra se inicia quando se corrompe a natureza humana, quando o ser humano se degenera e passa a exercer a agressão contra seus semelhantes. Quem prejudica o outro transgride a lei de natureza. E sobre ele pode ser exercido o direito de castigo.
Para Locke, o direito à propriedade pertence à natureza do ser humano. Todos têm o direito natural de possuir bens, conquistados pelo trabalho. Contudo, no decorrer histórico, com a complexificação das relações e diante da finitude dos bens, surgiram conflitos, especialmente relacionados à questão da propriedade. No estado natural não existe um juiz imparcial que possa cuidar da resolução desses conflitos. Será dessa necessidade que virá a livre decisão do ser humano para a associação formal, pela construção de um pacto.

O que dá origem à sociedade civil é a busca pela defesa da propriedade privada, considerada direito natural anterior à sociedade civil. Esse direito, contudo, deve ser atualizado ou conquistado por meio do trabalho, que transforma a coisa bruta em propriedade.
O Estado, que nasce da delegação de função representativa, tem o poder de fazer as leis (Poder Legislativo) e de impô-las e fazer com que sejam cumpridas (Poder Executivo). Os limites do poder do Estado são estabelecidos por aqueles mesmos direitos dos cidadãos para cuja defesa nasceu.
Portanto, os cidadãos mantêm o direito de rebelarem-se contra o poder estatal quando este atua contrariamente às finalidades para as quais foi instituído. E os governantes estão sempre sujeitos ao julgamento do povo.
Essa reflexão política de Locke se encaminha para o constitucionalismo liberal que se concretizou na Inglaterra, com a revolução de 1688. Nessa dinâmica, considerando a soberania popular, na origem do governo encontra-se a representação, a delegação, que recebe a função de representar e realizar os direitos da população. Por isso, a legitimidade do governo provém do acordo entre os homens, que mantêm o poder e o direito de resistência e insurreição, uma vez que a soberania pertence ao povo, que delega função representativa ao governante.

No texto a seguir, Locke reflete sobre a relação entre governante e povo (e vice-versa) e sobre a situação que permitiria destituir o governo de sua função política:

“Pode-se questionar aqui o que acontecerá se o poder executivo, que detém a força da comunidade civil, se utilizar dessa força para impedir que o poder legislativo se reúna e atue, quando a constituição fundamental ou as necessidades da vida pública o requererem? Eu respondo que o fato de se servir da força contra o povo sem autoridade e indo de encontro à confiança depositada no autor de ato equivale, por si só, a entrar em guerra contra o povo, que tem o direito de restaurar seu poder legislativo no exercício de seu poder. Se o povo instituiu um legislativo, é porque ele exerce o poder de fazer leis, seja a uma data precisa e fixada de antemão, seja em caso de necessidade; cada vez que uma força qualquer impede o poder legislativo de prestar à sociedade um serviço assim necessário, o povo, cuja segurança e preservação estão em jogo, tem o direito de destituí-lo pela força. Em todos os estados e em todas as condições, o verdadeiro recurso contra a força exercida sem autoridade é opor-se a ela pela força. O uso da força sem autoridade sempre coloca quem a usa em um estado de guerra, como o agressor, o que lhe permite receber como resposta o mesmo tratamento.”

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil, Cap. XIII. Tradução Magda Lopes e Marisa L. Costa. Petrópolis: Vozes, 1973, p.176-177 (Os pensadores)


Da divisão dos poderes

No fragmento a seguir, Locke fala da necessidade da divisão dos poderes:

“Como pode ser muito grande para a fragilidade humana a tentação de ascender ao poder, não convém que as mesmas pessoas que detêm o poder de legislar tenham também em suas mãos o poder de executar as leis, pois elas poderiam se isentar da obediência às leis que fizeram, e adequar a lei a sua vontade, tanto no momento de fazê-la quanto no ato de sua execução, e ela teria interesses distintos daqueles do resto da comunidade, contrários à finalidade da sociedade e do governo. Por isso, nas comunidades civis bem organizadas, onde se atribui ao bem comum a importância que ele merece, confia-se o poder legislativo a várias pessoas, que se reúnem como se deve e estão habilitadas para legislar, seja exclusivamente, seja em conjunto com outras, mas em seguida se separam, uma vez realizada a sua tarefa, ficando elas mesmas sujeitas às leis que fizeram; isto estabelece um vínculo novo e próximo entre elas, o que garante que elas façam as leis visando o bem público”.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil, Cap. XIII. Tradução Magda Lopes e Marisa L. Costa. Petrópolis: Vozes, 1973, p.170.

Celito Meier

13.3. O CONTRATUALISMO DE ROUSSEAU

13.3. O estado natural e o contrato social em Rousseau


Jean Jacques Rousseau (1712-1778) nasceu em Genebra. Por ter perdido a mãe no momento do parto, recebeu uma educação infantil desordenada. Em 1728, deixou Genebra e em 1741 fixou estadia em Paris, onde estabelece amizade com Diderot e outros enciclopedistas, como D”Alembert, Grimm e D’Holbach.

Inspirado na vivacidade e na riqueza da natureza, Rousseau levantou a hipótese do homem natural com ser íntegro e sadio e justo. Dessa forma, a maldade e a injustiça não seriam naturais no homem, mas derivadas da cultura que instituiu a propriedade privada, de onde derivam todos os males da vida em sociedade: as discórdias, as guerras, a pobreza, a miséria etc.
No fragmento a seguir, Rousseau reflete sobre a origem da desigualdade social, a partir da instituição da propriedade privada:

"O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras e assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: "defendei-vos de ouvir impostor, estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e a terra não pertence a ninguém!"
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos das desigualdades entre os homens. Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p 256, 257 e 259.

Para Rousseau, o ser humano no estado natural seria movido exclusivamente por seus instintos e por suas percepções sensíveis e imediatas. A expressão “bom selvagem” traduz bem isso. Embora ele seja “bom”, ele é “selvagem”.

Por meio do contrato social, ele passará por uma radical mudança. Isso pode ser verificado no fragmento a seguir, no qual Rousseau descreve e caracteriza essa mudança, suas perdas e o que ele ganha com isso:

“A passagem do estado de natureza para o estado civil determina ao homem uma mudança muito notável, substituindo na sua conduta o instinto pela justiça e dando às suas ações a moralidade que antes lhes faltava. É só então que, tomando a voz do dever o lugar do impulso físico, e o direito o lugar do apetite, o homem, até aí levando em consideração apenas a sua pessoa, vê-se forçado a agir baseando-se em outros princípios e a consultar a razão antes de ouvir suas inclinações.
Embora nesse estado se prive de muitas vantagens que frui da natureza, ganha outras de igual monta: suas faculdades se exercem e se desenvolvem, suas ideias se alargam, seus sentimentos se enobrecem, toda a sua alma se eleva a tal ponto, que, se os abusos dessa nova condição não o degradassem frequentemente a uma condição inferior àquela donde saiu, deveria sem cessar bendizer o instante feliz que dela o arrancou para sempre e fez, de um animal estúpido e limitado, um ser inteligente e um homem. [...]. O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar. O que com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui”.

ROUSSEAU. Contrato social. Livro I. Cap. VIII. São Paulo: Nova cultural, 1991. Trad. Lourdes S. Machado, p 36.


Na nova sociedade civil, criada pelo novo pacto a soberania pertenceria ao corpo político. Dessa forma, cada indivíduo seria membro do soberano. Onde existe o corpo não haveria necessidade de qualquer justificativa ou garantia, pois o corpo não poderia agir contra si mesmo. Por essa razão, diz Rousseau:

“O soberano, sendo formado tão-só pelos particulares que o compõem, não visa nem pode visar a interesse contrário ao deles, e, consequentemente, o poder soberano não necessita de qualquer garantia em face de seus súditos, por ser impossível ao corpo desejar prejudicar a todos os seus membros. [...].”

ROUSSEAU. Contrato social. Livro I. Cap. VIII. São Paulo: Nova cultural, 1991. Trad. Lourdes S. Machado, p 35-36.

Sendo a vontade geral a igual obediência de todos à lei, livremente elaborada pela comunidade, ninguém obedece ao outro, mas sim todos à lei, pois é fruto e expressão da vontade geral. Em sua obra o contrato social, Rousseau escreve:

“Só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado segundo o fim de sua instituição, que é o bem comum, porque se a oposição dos interesses particulares tornou necessário o estabelecimento das sociedades, foi o acordo desses mesmos interesses que o possibilitou”.

ROUSSEAU. Contrato social. Livro I. Cap. VIII. São Paulo: Nova cultural, 1991. Trad. Lourdes S. Machado, p.43 ( Os pensadores).

Rousseau era um pensador profundamente sensibilizado pelo tema da desigualdade social. A existência crescente da desigualdade, em seus diferentes níveis de manifestação, é a maior ameaça à democracia, uma vez que vai na contramão da soberania do corpo político, que é a vontade geral e não a vontade de alguns ou da maioria, que é apenas quantitativa, não atendendo ao critério qualitativo.

A substituição da vontade individual pela vontade geral é o princípio e o critério que torna possível a vida social. É a vontade geral que garante a liberdade e promove a perfeita igualdade entre as pessoas. A pergunta que Rousseau faz é sobre a forma de conseguir essa conversão para o bem comum. Como educar os indivíduos para a vontade geral, em uma sociedade que cultiva a propriedade privada, fonte de desigualdades e violências?

O itinerário pedagógico que Rousseau elabora, que se encontra em sua obra Emílio, mostra que a educação é um problema político e moral, problema relacionada à formação de um novo ser humano. Essa educação buscará bloquear, desde a infância, toda forma de egoísmo, especialmente o desejo pela propriedade privada, garantindo a nova orientação humana na vida social.


Celito Meier

13.5. Três espécies de governo, em Montesquieu.

Três espécies de governo, em Montesquieu.


Filósofo, cientista político e escritor francês, Charles-Louis Secondat, conhecido como Charles Montesquieu ou barão de Montesquieu (1689- 1755) construiu um pensamento político centrado na especificidade ou singularidade do aspecto político e social do ser humano.
Nessa reflexão, que busca demarcar o horizonte e o domínio da política e da sua ciência,Montesquieu afirmou que as ações humanas em sociedade não devem ser regias por leis divinas, mas por leis humanas. Insistiu, portanto na separação entre política e religião. E foi no domínio da política que ele afirmou a natureza da liberdade, entendida como o direito de fazer o que as leis permitem.
Lançando o olhar sobre os sistemas políticos, o importante, para Montesquieu, não é julgar as espécies de governos, mas compreender os princípios que regem cada uma das formas de governo, analisar a natureza de cada uma delas..
Quanto à república, afirmou que o que distinguia a natureza da república de outras espécies de governo está no fato de o poder soberano pertencer ao povo como um todo ou a uma parcela dele. No primeiro caso, teremos a democracia; no segundo caso, a aristocracia. Para Montesquieu, o princípio republicano é a virtude, concebida como amor à pátria, como busca do bem comum. Por essa razão, torna-se fundamental o investimento da educação política, para que haja cidadãos virtuosos.
O que identifica e diferencia a monarquia está no fato de que um só governa, em conformidade com as leis fixas e estabelecidas. O princípio monárquico é a honra, compreendida como amor pelo Estado.
Bem diferente é o despotismo. Segundo Montesquieu, nesse tipo de governo exercido por uma só pessoa, não há obediência a leis e regras. O princípio despótico é o medo, e a população vive uma forma de escravidão.
Em qualquer forma de Estado, diz Montesquieu, há três tipos de poder: O Legislativo, o Executivo e o Judiciário, que correspondem a diferentes funções do Estado. O que Montesquieu propõe é que haja uma articulação entre esses poderes, de modo que possa haver uma limitação recíproca ou mútua. Deve-se evitar os extremos da independência e da fusão total, para poder combater e impedir as arbitrariedades.

Celito Meier

7.3. PLATÃO E A POESIA NA CIDADE

Na tradição cultural grega, desde a mitologia, a poesia sempre foi considerada sua principal fonte de conhecimento, capaz de responder às grandes questões que os humanos se colocavam sobre o sentido da vida. Por isso, os poetas sempre foram vistos como autoridades supremas.
Nessa tradição, a oralidade constituiu a marca da cultura. Nela, há uma expressão consagrada: “Homero, educador da Hélade”, educador de toda a Grécia. Essa expressão traduz muito bem a concepção que reinava nessa época, na qual Homero era o maior de todos os poetas e a poesia tinha função educativa de destaque. Nesse contexto, a educação dos cidadãos acontecia mediante a audição e a memorização de trechos, especialmente da Ilíada e da Odisseia, proclamados, na esfera pública, por profissionais, os poetas ou rapsodos, e na esfera particular da família, por anciãos ou pelos pais.
É preciso lembrar que a aceitação do poeta como educador tem relação com um universo de mentalidade mítico-religiosa, que marcava o período da Grécia Arcaica (século VII a VI a.C). Nesse contexto, a palavra do poeta é de inspiração divina e, portanto, portadora da verdade inquestionável.
Contudo, na Grécia clássica, em contexto de pólis, a palavra que estava em vias de valorização era a do logos argumentativo, demonstrativo. Isso foi decisivo para que Platão pudesse realizar a sua crítica às pretensões da poesia. Nesse novo contexto, a filosofia, que é por excelência logos argumentativo, vai reivindicar o papel de paideia, de educadora dos cidadãos.
Nesse clima, no qual a poesia era tida em alta estima, a crítica de Platão passa a ser algo bem radical e não deve de ter sido fácil fazer frente a essa tradição educativa da poesia. Na crítica à poesia de Homero, Platão afirma que a poesia pode ser agradável e encantadora, mas também enganadora. Ou seja, o prazer estético pode desviar a mente humana do caminho da virtude.
Sendo assim, ao condenar a poesia como imitação, Platão afirma que sua beleza é apenas aparente, com ritmo e harmonia que seduzem e trazem desequilíbrios no espírito.
Vejamos o fragmento.

A imitação está longe da verdade e, se modela todos os objetos, é porque respeita apenas a uma pequena parte de cada um, a qual, por seu lado, não passa de uma sombra. [...] Porém, se fosse mesmo versado no conhecimento das coisas que imita, suponho que se dedicaria muito mais a criar do que a imitar [...]. O imitador não tem nenhum conhecimento válido do que imita, e a imitação é apenas uma espécie de jogo infantil. [...]
O poema imitador introduz um mau governo na alma de cada individuo, lisonjeando o que nele há de irracional, o que é incapaz de distinguir o maior do menor [...] E ainda não acusamos a poesia do mais grave de seus malefícios. O que mais devemos recear nela é, sem dúvida, a capacidade que tem de corromper, mesmo as pessoas mais honestas, com exceção de um pequeno número. [...]
E, no que diz respeito ao amor, à cólera e a todas as outras paixões da alma, que acompanham cada uma das nossas ações, a imitação poética não provoca em nós semelhantes efeitos? Fortalece-as, regando-as, quando o certo seria secá-las, faz com que reinem sobre nós, quando deveríamos reinar sobre elas, para nos tornarmos melhores e mais felizes, em vez de sermos mais viciosos e miseráveis.

PLATÃO, A República. Livro X. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p.325-334

Assim, no Livro X de A República, encontramos a reflexão de Platão que destaca os motivos de a poesia não poder ser usada como instrumento de educação política dos cidadãos e, muito menos, de busca pela verdade. Não se trata, simplesmente, de banir a poesia da cidade. Ela pode apresentar dimensões positivas. O que não se deve mais aceitar é o status ou o lugar que ela ainda vem tendo na cidade. Platão afirma esse papel de formadora do cidadão e de busca da verdade cabe à filosofia, que, portanto, deverá retirar a poesia desse âmbito.
O que há de detestável nos poetas, para Platão, é o fato de eles imitarem tudo, fingirem ser qualquer coisa, qualquer ser. Esse tipo de poeta não será aceito na cidade ideal de Platão. Contudo, se o poeta for um imitador somente de homens bons e nobres, ele poderá permanecer, pois nesse caso, ele exerce um papel positivo. Ao expulsar da cidade o poeta imitador e aceitar o poeta que seja “narrador de histórias mais austero e menos aprazível" ( Livro III, 397e a 398b), compreende-se a delimitação dessa expulsão. Trata-se de livrar a cidade daqueles poetas que sabem somente agradar e sob seu agrado a vida da cidade perde nas virtudes ética e política.
Assim, se a poesia for instrumento capaz de alimentar tendências para a virtude ela poderá permanecer na cidade. Mas, o normal é que ela siga sua tendência ao vício, ao excesso ou à falta, à irracionalidade.Em suma, o grande argumento está no fato de que a poesia abre muitas brechas para que a razão se perca.
A poesia, considerada uma mentira em palavras, recorre às ficções, a imagens para persuadir ou gerar determinados sentimentos e comportamentos. Assim, ela poderá até ser útil para muitas coisas, como por exemplo gerar um sentimento político de unidade. As palavras mentirosas podem até transformar-se em nobres mentiras como, por exemplo, no médico que usa de palavras mentirosas para acalmar o paciente. Com isso, acaba proporcionando uma ficção benéfica. Contudo, no terreno filosófico, do logos argumentativo, ela deve ser evitada, pois confunde os espíritos. É preciso, então, expulsar da poesia o que ela tem de irracional e de mimético, de simples imitação generalizada, de cópia, aparência de real.
Portanto, trata-se de operar uma inversão. Determinada forma de poesia poderá continuar a existir, desde que com função subordinada, auxiliar. Se for possível harmonizar a poesia com a vida virtuosa, não há porque censurá-la nesse aspecto. Assim, permanece a possibilidade da presença de uma determinada forma de poesia na cidade.

Celito Meier

7.1. PLATÃO: O CONHECIMENTO SENSÍVEL E INTELIGÍVEL,

No livro VII de A república, Platão elabora a alegoria da caverna para ilustrar seu pensamento, explicando a evolução no processo de conhecimento e a diferença entre a verdadeira realidade e o âmbito das incompletas projeções que dela são feitas, as sombras.

Essa alegoria pode receber diferentes leituras: uma leitura relacionada ao tema do conhecimento (leitura epistemológica) e uma leitura política. A alegoria tem relação com o papel que a educação exerce.

Nas palavras de Platão: “A educação não é o que alguns proclamam que é, porquanto pretendem introduzi-la na alma onde ela não está, como quem tentasse dar a vista a olhos cegos. [...] A educação é, pois, a arte que se propõe este objetivo, a conversão da alma, e que procura os meios mais fáceis e mais eficazes de o conseguir. Não consiste em dar visão ao órgão da alma, visto que já a tem; mas, como ele está mal orientado e não olha para onde deveria, ela esforça-se por encaminhá-lo na boa direção [...]

(PLATÃO. A República. Livro VI. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 229)

ALEGORIA DA CAVERNA: O VISÍVEL E O INTELIGÍVEL

Antes de tudo, a alegoria da caverna, de acordo com a advertência do início do texto, diz respeito à educação ou à falta dela. Platão procura mostrar que devemos separar luz e sombra. É preciso buscar a luz, a verdade. E a palavra que os gregos usavam para designar o que chamamos de verdade era aletheia (a é um prefixo que indica oposição, negação; lethe significa o esquecimento, o velamento; assim, verdade para os gregos era o não esquecido, o lembrado, o não-perdido, o não oculto, o real, o não dissimulado).
Nessa caminhada em direção ao conhecimento verdadeiro, Platão distingue graus ou níveis evolutivos de conhecimento. No âmbito sensível, estaria a crença e a opinião (doxa); no âmbito intermediário, encontraríamos raciocínio, que seria o caminho capaz de proporcionar a saída da caverna. E, no último nível, encontraríamos a intuição intelectiva, que captaria a essência, chamada por Platão de ideia. As ideias seriam a verdadeira realidade e conhecê-las significaria ter conhecimento verdadeiro.
Vejamos o fragmento a seguir, no qual Sócrates, personagem central no diálogo Fédon de Platão, conduz uma reflexão sobre a essência das coisas, a ideia:

“Receei que minha alma viesse a ficar completamente cega se eu continuasse a olhar com os olhos para os objetos e tentasse compreendê-los através de cada um de meus sentidos. Refleti que devia buscar refúgio nas ideias e procurar nelas a verdade das coisas. [...]. Assim, depois de haver tomado como base, em cada caso, a ideia, que é, a meu juízo, a mais sólida, tudo aquilo que lhe seja consoante eu o considero como sendo verdadeiro, quer se trate de uma causa ou de outra qualquer coisa, e aquilo que não lhe é consoante, eu o rejeito como erro”.
(PLATÃO. Diálogos. Trad. Jorge Paleikat e João Cruz Costa. 4.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 106)

No âmbito do sensível estaria a particularidade da opinião do ser humano, prisioneiro do senso comum. Dessa forma, o interior da caverna seria expressão da ignorância, sendo o reino dos sentidos, das aparências, das opiniões, da multiplicidade de formas fugazes. Em contrapartida, a esfera do inteligível seria o âmbito do conhecimento, da intuição intelectiva, das ideias, das essências, da imutabilidade do ser.
Para Platão, a ideia é a realidade última das coisas, intuída pelo intelecto. Ela não se confunde com as aparências sensíveis. Tomemos como exemplo elementos de nosso cotidiano como as árvores. Há muitas e diferentes árvores e elas crescem, se modificam com as estações e morrem. Contudo, a verdadeira realidade última, a ideia, permanece.

DA DIALÉTICA À INTUIÇÃO DA VERDADE.

A forma de pensar que possibilitará, portanto, a intuição da ideia é definida por Platão como dialética, que é uma transformação do método socrático da maiêutica. Para Platão, a dialética consiste em examinar teses contrárias sobre um mesmo tema, objetivando descobrir o que há de falso, para rejeitá-lo e reter apenas o que é verdadeiro. Com a dialética busca-se, ao seu término, a intuição intelectual de uma essência, ou ideia. Assim, verificamos que o objeto da ciência não é o sensível; mas, o inteligível, o universal, o conceito, que será atingido através intuição intelectiva, possível após longo processo de raciocínio e de pensamento dialético.

8.1 ARISTÓTELES E O CONHECIMENTO

Os caminhos do conhecimento

Para Aristóteles, existe uma condição e uma atitude fundamental no homem que lhe possibilita chegar ao conhecimento, à teoria, à contemplação. Na abertura de sua obra Metafísica, escreve: “todos os homens desejam, por natureza, saber”. Assim, conhecendo realizamos nossa natureza de seres racionais. Por isso, o conhecimento para Aristóteles é fim em si mesmo, que não necessita ser buscado para outra finalidade que não seja o aprimoramento da própria natureza humana.
Para Aristóteles, os seres humanos começam a filosofar a partir do espanto (to thaumázein). Não devemos entender o espanto no sentido usual, mas no sentido de estranhamento e de encantamento, de questionamento e de investigação das coisas tidas como normais ou “óbvias” no senso comum. Trata-se de olhar para o mundo com uma nova atitude. É o espanto que está na raiz o conhecimento. Ao espantar-se, a pessoa reconhece a própria ignorância, ao mesmo tempo em que se coloca na dinâmica da busca. Assim, ao filosofar a pessoa afasta-se da ignorância. O espanto, que se traduz na capacidade admirativa, de ver de perto e ver com novos olhos, realiza a singularidade da alma humana, desejosa de conhecer.

Leia o fragmento a seguir:

“É por força de seu maravilhamento que os seres humanos começam agora a filosofar e, originalmente, começaram a filosofar; maravilhando-se primeiramente ante perplexidades óbvias e, em seguida, por um progresso gradual. [...] Ora, aquele que se maravilha e está perplexo sente que é ignorante (de modo que, num certo sentido, o amante dos mitos é um amante da sabedoria [um filósofo], uma vez que os mitos são compostos de maravilhas); portanto, se foi para escapar à ignorância que se estudou Filosofia, é evidente que se buscou a ciência por amor ao conhecimento, e não visando qualquer utilidade prática”.

ARISTÓTELES, Metafísica. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2 ed. 2012, Livro I, 1,2 p. 44-46.

A metafísica e os campos do saber

Toda ciência investiga os princípios, as causas e a natureza dos seres que são seu objeto de estudo. Em conformidade com Aristóteles, as ciências se dividem em três grandes grupos: as ciências teoréticas, que tem como fim a verdade essencial; as ciências práticas, que tem por objetivo proporcionar o aperfeiçoamento moral do ser humano; e as ciências produtivas ou poiéticas, nas quais o conhecimento está vinculado à produção de uma obra específica. Este último aspecto faz referências às artes, aos saberes práticos envolvidos na produção de artefatos.

A metafísica ou filosofia primeira é a ciência teorética mais importante, pois fornece os princípios primeiros dos quais dependem os princípios das matemáticas e da física, que também são ciências teoréticas. O objeto de seu estudo não é um ser particular, mas o “ser enquanto ser”, sua substância, sua essência.
As ciências práticas são aquelas que têm no homem o princípio agente, a causa da ação e cuja finalidade é o próprio homem. É o campo da práxis, das ações racionais e refletidas que buscam alcançar um fim, um bem. As ciências práticas são a ética e a política. Primeiramente, a ética estuda a ação do homem enquanto indivíduo que deve ser preparado para viver na pólis. Nessa reflexão ética, o foco estará voltado para os princípios racionais que promovem a vida virtuosa do indivíduo. A política estuda a ação dos homens enquanto cidadãos, seres sociais, políticos, objetivando o bem comum. E, finalmente, as ciências produtivas se referem a uma particularidade da ação humana, à ação fabricadora, de saber produtivo, abrangendo os estudos de estética.
Entre todas as ciências, as mais altas e mais nobres são as teoréticas ou contemplativas, uma vez que correspondem tanto ao que há de mais singular em nós, ou seja, o desejo de conhecimento, que tem seu fim em si mesmas, quanto por causa de seus objetos, classificados como universais e necessários.
Vamos acompanhar a reflexão de Aristóteles neste fragmento:
“A disposição em virtude das quais a alma possui a verdade, quer afirmando, quer negando, são em número de cinco: a arte, o conhecimento científico, a sabedoria prática, a sabedoria filosófica e a razão intuitiva [...].
O conhecimento científico é um juízo sobre coisas universais e necessárias, e tanto as conclusões da demonstração como o conhecimento científico decorrem de princípios primeiros (pois ciência subentende apreensão de uma base racional). Assim sendo, o primeiro princípio de que decorre o que é cientificamente conhecido não pode ser objeto de ciência, nem de arte, nem de sabedoria prática; pois o que pode ser cientificamente conhecido é passível de demonstração, enquanto a arte e a sabedoria prática versam sobre coisas variáveis. Nem são esses primeiros princípios objetos de sabedoria filosófica, pois é característico do filósofo buscar a demonstração de certas coisas.[...], só resta uma alternativa que seja a razão intuitiva que apreende os primeiros princípios”.

ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. Livro VI Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 102-106.

Para Aristóteles, os primeiros princípios não são objeto de demonstração filosófica. Eles são acessíveis pela sabedoria filosófica, a Sophia, a virtude teorética mais elevada.

8.3. ARISTÓTELES E AS QUATRO CAUSAS: ATO E POTENCIA

Tudo o que existe, de acordo com Aristóteles, é decorrência do movimento de passagem de potência para ato, um movimento que abarca quatro causas. Inicialmente, existe a causa material, que se refere à matéria de algo). Assim, poderá ser madeira, gesso, mármore, etc. Em seguida, existe a causa formal. Com ela, estamos nos referindo à forma que a matéria recebe. Por exemplo, a forma de estátua. Essa causa formal é resultante de uma outra causa, a eficiente. Por causa eficiente, Aristóteles entende a ação motora que trabalha a matéria e lhe dá determinada forma. No caso da matéria “mármore”, que virou estátua, a causa eficiente foi o escultor. Por fim, a causa final, que se refere ao objetivo, à finalidade da ação. Considerando que o objetivo da produção da estátua seja a construção de um monumento para homenagear ou cultivar a memória de uma pessoa, a causa final teria relação com esse objetivo.

Essas quatro causas não possuem o mesmo valor, indo da causa inferior à superior. Sendo a cultura filosófica grega uma cultura que valoriza a busca pela sabedoria, o cultivo da contemplação, como finalidade última da vida, a causa final tem valor superior à causa motora, eficiente. A causa eficiente, que é o fazer e o fabricar, é de valor menor, comparativamente com a atividade política e contemplativa.
Considerando que a metafísica considera e busca o ser inteiro, ela não fica restrita às partes, aos acidentes, ao mutável. Para falar de um ser é preciso distinguir essência (substância) de acidente, atributo que o ser poderia ou não possuir. O que faz um homem ser homem? Aristóteles dirá que a essência, a substância do homem é a racionalidade, ao passo que características como jovem, alto, baixo, gordo ou magro são acidentes, pois mudam de ser para ser, mas não mudam o ser em si.
Além da distinção entre substância e acidente, Aristóteles faz uso da distinção entre matéria e forma. Todo ser é composto de matéria e forma. A matéria, pura passividade, contém a forma em potência. Esse olhar permite captar e expressar a dinamicidade da vida. Por isso, no ser individual é preciso distinguir o que está atualmente e o que tende a ser; ou seja, ato e potência. Por exemplo, o grão é planta em potência e a planta, como ato, é a realização da potência. A mudança universal é passagem incessante da potência ao ato.

Para Aristóteles, existe somente em ente sem potência, que é o ato puro, definido como motor imóvel. No livro XII da obra Metafísica, Aristóteles aborda o tema do motor imóvel, que tudo move e por nada pode ser movido. Vejamos um trecho:

“Nossa investigação concerne à substancia, já que os princípios e causas que buscamos são os das substancias.[...]. Evidencia-se, assim, por força da explicação dada acima que há uma substancia que é eterna, imóvel e independente das coisas sensíveis, tendo sido também mostrado que essa substância não pode apresentar qualquer magnitude, mas que é sem partes e indivisível, pois produz movimento num tempo infinito, e nada finito possui uma potência infinita. [..]. Evidencia-se, também, que essa substancia é imperturbável e inalterável, uma vez que todos os demais tipos de movimento são posteriores ao movimento no espaço [...]
O primeiro princípio e ser primordial é imóvel tanto essencial quanto acidentalmente, mas produz a forma primária de movimento, a qual é singular e eterna. Ora, como aquilo que é movido é necessariamente movido por alguma coisa, e o primeiro motor tem que ser, em si, imóvel, e o movimento eterno tem que ser produzido por alguma coisa eterna, e num único movimento por ser única coisa; então, cada um desses movimentos no espaço tem também que ser produzido por uma substancia que seja em si mesma imóvel e eterna”.

ARISTÓTELES, Metafísica. Livro XII.Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 297-310.

Celito Meier

8. ARISTÓTELES: DA VIRTUDE E DA FELICIDADE

O desejo da Felicidade, fim absoluto.

No pensamento socrático, platônico e aristotélico, o traço antropológico comum identifica o homem como animal racional, que busca a felicidade como fim último da vida. E essa felicidade (eudaimonia) tem relação com a permanente busca pela sabedoria.
Considerando que o homem é um ser que age, e que todas as ações tendem a fins, que são bens, Aristóteles percebe uma hierarquia na ordem dos fins, que não se estende ao infinito. Existe um fim último. O conjunto das ações humanas e o conjunto dos fins particulares para os quais elas tendem subordinam-se a um "fim último", que é "bem supremo", que todos os homens concordam em chamar "felicidade". Mas, o que é a felicidade? Para muitos, a felicidade é o prazer e o gozo (hedoné). Para alguns, a felicidade é a honra e o sucesso. Existe, ainda, o grupo de pessoas para o qual a felicidade tem vínculo com a posse de riqueza.
De acordo com Aristóteles, o fim de um ser é determinado pela sua forma essencial, por aquilo que o diferencia do outro e para o qual ele foi feito. Assim, o bem supremo, a felicidade (eudaimonia) realizável pelo homem consiste em aperfeiçoar-se na humanidade que o caracteriza. Em outras palavras, tornar-se em ato o que ele já é em potência, por meio da atividade da razão, que o diferencia de todos os outros seres. Na expressão eudaimonia, percebemos que o prefixo grego “eu”, significa bom, perfeito; e “daimon”, como já vimos em Sócrates, refere-se à consciência, ao espírito, ao que nos diferencia dos outros animais e do comum dos mortais. Desta forma, felicidade (eudaimonia) significa viver conforme a boa consciência, o espírito perfeito.

Nas palavras de Aristóteles:

“ Os fins são vários e nós escolhemos alguns dentre eles [...]. Segue-se que nem todos os fins são absolutos; mas o sumo bem é claramente algo de absoluto. Portanto, só existe um fim absoluto [...] Ora, nós chamamos de absoluto aquilo que merece ser buscado por si mesmo, e não com vistas em outra coisa; por isso, chamamos de absoluto incondicional aquilo que é sempre desejável em si mesmo e nunca no interesse de outra coisa. Ora, esse é o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade. [...] A felicidade é, portanto, algo absoluto e autossuficiente, sendo também a finalidade da ação”.
(ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. Livro I. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Nova Cultural. 1991, p. 1-7)

Portanto, felicidade, para o homem, não pode consistir no simples viver (vegetais), nem no viver a vida sensitiva (animais). Resta-lhe a atividade específica de sua alma: a razão. Viver a racionalidade é nossa vocação e desafio. Desta forma, o homem é atividade, isto é, passagem da potência ao ato; atividade da alma racional, buscando tornar-se sempre melhor, mais justo, mais virtuoso.

A felicidade e a virtude

Se a felicidade não existe fora da vida virtuosa, se a virtude é condição para ser feliz, e se a virtude não é natural, como é possível tornar-se virtuoso? Para Aristóteles, a finalidade última da vida humana é encontrar a felicidade (eudaimonía), o que somente é possível por meio de uma vida racional e virtuosa. Para chegar à virtude, o indivíduo depende do discernimento, da deliberação, de um julgamento da reta razão, para evitar os extremos do excesso e da falta.

Vejamos o texto a seguir, um fragmento retirado do livro II da Ética a Nicômaco:

“Visto que na Alma se encontram três espécies de coisas ___ paixões, faculdades e disposições de caráter ___ ,a virtude deve pertencer a uma destas. Por paixões entendo os apetites, a cólera, o medo, a audácia, a inveja [...] e em geral os sentimentos que são acompanhados de prazer e dor; por faculdades, as coisas em virtude das quais se diz que somos capazes de sentir tudo isso, ou seja, de nos irarmos, de magoar-nos ou compadecer-nos; por disposições de caráter, as coisas em virtude das quais nossa posição com referência às paixões é boa ou má. Por exemplo, com referência à cólera, nossa posição é má se a sentimos de modo violento ou demasiado fraco, e boa se a sentimos moderadamente; e da mesma forma no que se relaciona com as outras paixões.
Ora, nem as virtudes nem os vícios são paixões, porque ninguém nos chama bons ou maus devido às nossas paixões, e sim devido às nossas virtudes ou vícios. [...] sentimos cólera e medo sem nenhuma escolha de nossa parte, mas as virtudes são modalidades de escolha, ou envolvem escolha. [...]
Ora, a virtude diz respeito às paixões e ações em que o excesso é uma forma de erro, assim como a carência, ao passo que o meio-termo é uma forma de acerto digna de louvor. Em conclusão, a virtude é uma espécie de mediania. [...]
A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa mediania. [...] E assim, no que toca à sua substancia e à definição que lhe estabelece a essência, a virtude é uma mediania; com referência ao sumo bem e ao mais justo, é, porém, um extremo”

ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. Livro II Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Nova Cultural. 1991, p. 31-33.

Dessa forma, por virtude, Aristóteles compreende: “uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa mediania”. E sendo uma disposição de caráter, a virtude não é natural. Ela é uma resultante do hábito de cultivar aptidões naturais. Ela é um potencial humano, no qual o individuo se realiza e que é conatural à vida feliz, uma vez que impllica o cultivo da dimensão mais nobre da alma humana.

Ao referir-se às virtudes, Aristóteles distingue as virtudes intelectuais ou dianoéticas das virtudes éticas ou morais. As virtudes intelectuais ou dianoéticas são características da parte mais elevada da alma, da alma racional. São as virtudes da razão, relacionadas à aprendizagem, necessitando portanto de experiência e tempo. Aristóteles dá especial ênfase a três virtudes intelectuais: a virtude da ciência (episteme), compreendida como a capacidade demonstrativa; a virtude da inteligência (nous), compreendida como a capacidade de conhecer os princípios da ciência; e a virtude da sabedoria filosófica (sophia), compreendida como a síntese ou a unidade entre ciência e inteligência. Assim, a sabedoria filosófica é a maior dentre todas as virtudes teoréticas uma vez que ela tem a capacidade tanto de conhecer os princípios quanto de demonstrar a partir deles. Essa virtude maior coincide com a metafísica, que é a filosofia primeira para Aristóteles, que tem por objeto as realidades mais elevadas.

A virtude ética é a virtude do comportamento prático, que implica no controle dos desejos, das paixões e dos apetites, submetendo-as ao domínio da razão. Essa virtude só se consegue mediante a repetição de uma série de atos sucessivos, ou seja, com o hábito. É fazendo que aprendemos a fazer, lendo que aprendemos a ler, nadando que aprendemos a nadar; assim, igualmente, é praticando ações justas que nos tornamos justos. Dessa forma, a virtude torna-se um "modo de ser", que nós mesmos construímos, a partir do cultivo das aptidões naturais, a nós inerentes. Por isso, é correto afirmar que ninguém é naturalmente virtuoso. Enquanto a aptidão natural é um dado de nossa natureza, a virtude é cultivada mediante hábito, exercício cotidiano.

Retomando o conceito, a virtude é uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa mediania. Para que o indivíduo consiga bem escolher ele precisa da sabedoria prática, da phrónêsis, que é uma importante virtude intelectual, compreendida com ao capacidade de deliberar bem, de escolher os melhores meios para atingir o fim almejado. Ela tem um caráter prático, requer experiência e exige um conhecimento tanto do universal quanto do particular. Por exemplo, para almejar a saúde, é fundamental saber que a carne branca é mais saudável (universal) e que peixe é carne branca (particular). Com essa capacidade, a phrónêsis é a mais elevada virtude da parte deliberativa da alma racional, que se refere às realidades humanas mutáveis.

Vemos assim que a phrónêsis não é ciência, uma vez que é prática e voltada ao particular. Tampouco a phrónêsis é inteligência (noüs), uma vez que a inteligência tem por objeto as definições universais. Acima da phrónêsis está a sophia, que se ocupa das realidades divinas, mais elevadas. E é por essa razão que a sophia a maior das virtudes dianoéticas. Sendo capacidade de deliberação, a phrónêsis tem como finalidade última a Sophia.

Nessa sabedoria prática, representada pela phrónêsis, relacionam-se a teoria e a prática, a capacidade racional e a virtude moral, ambas construídas com muito esforço, com o passar do tempo e com muita experiência. Dessa forma, o conhecimento e o hábito tornam-se exigências fundamentais para alcançar a vida feliz.

No livro V, da ética a Nicômaco, ao se referir à virtude da justiça, Aristóteles fala em “disposição de caráter que torna as pessoas propensas a fazer o que é justo”. E a justiça tem relação com o respeito às leis, que asseguram o bem comum. Por essa razão, considerando a dimensão social do ser humano, a justiça é uma virtude completa, uma vez que nela o individuo age não somente sobre si, mas também sobre o seu próximo, assegurando o maior bem possível para a vida em sociedade, a proporção, a justa medida.

Celito Meier

7.2. PLATÃO E A POLÍTICA

O GOVERNANTE FILÓSOFO E A CIDADE JUSTA.

Recordando a alegoria da caverna, vamos buscar, agora, uma interpretação política dessa imagem. Sob o ponto de vista político, como influenciar as pessoas que não veem que se encontram nas sombras da ignorância? Voltando à imagem da caverna: o filósofo é aquele que se libertou das correntes e alienações do senso comum. Tendo contemplado a verdadeira realidade e ter passado da doxa à epistême, da opinião à ciência, o filósofo deverá lutar contra qualquer tendência de ali permanecer, deverá retornar ao fundo da caverna, onde se encontra o comum dos mortais e deverá ser orientação e auxiliar no caminhar em direção à luz. Dessa forma, os filósofos carregam a responsabilidade de governar a cidade, justamente por não serem desejosos e ambiciosos pelo poder político e, especialmente, por terem o conhecimento do que seja o bem, a verdade, a justiça, a harmonia.
Recordando a tripartição da alma, busquemos a aplicação política dessa ideia. Considerando que a justiça e a virtude consistem no governo da razão sobre os apetites e a cólera, a cidade justa será aquela na qual as diferentes funções da alma realizam cada uma a sua específica virtude e capacitação. Assim, aos comerciantes caberá cuidar da sobrevivência da cidade, aos guerreiros ou militares, a defesa da cidade; e aos governantes caberá o exercício do poder político na cidade. De acordo com Platão, os filósofos deverão exercer o governo, por serem os melhores ou mais bem preparados intelectualmente.

A expressão grega para melhores é aristoi. Daí que a forma de governo preferida e defendida por Platão é a Aristocracia intelectiva, uma espécie de sophocracia, governo dos sábios.
Nas palavras de Platão:
“Enquanto os filósofos não forem reis nas cidades, ou aqueles que hoje denominamos reis e soberanos não forem verdadeira e seriamente filósofos, enquanto o poder político e a filosofia não convergirem num mesmo indivíduo [...], não terão fim, meu caro Glauco, os males das cidades, nem, conforme julgo, os do gênero humano, e jamais a cidade que nós descrevemos será edificada. (PLATÃO. A República. Livro V. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 180-181).

Portanto, a cidade justa é aquela na qual o filósofo governa, o militar pensa na estratégias e organiza a defesa da cidade e os que estão vinculados à virtude econômica cuidam do sustento e da sobrevivência dos habitantes da cidade. O Estado justo possui, assim, quatro virtudes cívicas, as primeiras três correspondem a cada uma das classes: temperança, coragem e sabedoria prática (prudência). A quarta virtude, da qual as três se encontram vinculadas e dependentes, é a justiça.

De acordo com Platão, a alma humana é tripartida e na vida em sociedade, os indivíduos se distinguem pela predominância de sua alma predominante e, com ela, por sua função social correlacionada.]

ALMA CONCUPISCÍVEL / APETITIVA / CARNAL ( é o aspecto mais elementar): As classes socais correspondentes são: Os comerciantes e artesãos, que produzem os bens econômicos e cuidam do sustento da cidade. Para essa camada social, que é expressão do elemento mais baixo de nossa alma tripartida, a virtude solicitada é a temperança. Essa virtude é conquistada através da força de vontade que governa sobre as paixões cegas, e consegue sua submissão.

ALMA IRASCÍCVEL ( COLÉRICA, VOLITIVA). Os soldados cuidam da defesa da cidade. Para essa camada social, que é expressão do elemento intermediário de nossa alma tripartida, a virtude solicitada é a da coragem, da fortaleza em agir contra os impulsos primários, cuja tendência é sempre a desorganização, o excesso ou a falta, formas viciadas de viver.

ALMA RACIONAL( Elemento mais nobre.Faculdade do pensamento). Os Filósofos são os governantes da cidade. Para essa classe social, expressão do elemento supremo e imortal de nossa alma, a virtude solicitada é a sabedoria prática, a prudência decorrente da verdadeira ciência, da contemplação do bem ideal, da verdade, do belo.

A JUSTIÇA é a harmonia que se estabelece entre essas três virtudes. A justiça perfeita se realiza quando os cidadãos e as camadas sociais desempenham da melhor maneira as funções que lhe são próprias por natureza ou por lei.

DA DEMOCRACIA, DA DEMAGOGIA E DA TIRANIA

A expressão grega dêmos, que está na raiz de democracia, refere-se originariamente, ao povo, à multidão que não tinha os direitos da cidadania grega, seja por serem vistos como “naturalmente” inferiores, seja por motivos de marginalização política.Em diálogo com Adimanto, Sócrates assim se expressa:

Pois, a meu ver, a democracia surge quando os pobres, tendo vencido os ricos, eliminam uns, expulsam outros e dividem por igual com os que ficam o governo e os cargos públicos. E devo dizer, na maior parte das vezes, estes cargos são atribuídos por sorteio. [...]. Em primeiro lugar, não são eles livres, e a cidade não é sobejamente livre e de linguagem sincera e se pode fazer o que se quer? [...]. Em todo lugar onde tal liberdade impera, cada um organiza a vida como melhor lhe convém [..]
Nesse Estado não há obrigação de mandar se não se for capaz de tal, nem de obedecer se não se quiser, assim como a fazer a guerra quando outros a fazem, nem a ficar em paz quando outros ficam, se não se pretender a paz. No entanto, mesmo que a lei proíba ser magistrado ou juiz, isso não evita que se possam exercer essas funções, se se desejar. À primeira vista, não é uma condição divina e deliciosa? [...]
A mansidão da democracia para com certos condenados não é elegante? Não viste ainda num governo desta natureza homens feridos por uma sentença de morte ou de exílio continuarem na sua pátria e circularem em público? [...]
Não é o desejo insaciável daquilo que a democracia considera o seu bem supremo [a liberdade] que a perde? [...] Não é o desejo insaciável desse bem, e a indiferença por todo o resto, que muda este governo e o obriga a recorrer à tirania?

PLATÃO, A República. Livro VIII. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 273-280.

Celito Meier

7. PLATÃO E A CONCEPÇÃO DE SER HUMANO

Platão (427-347a.C.) pertencia a uma das mais nobres famílias atenienses. Seu nome era Arístocles, mas, devido à sua constituição física, recebeu o apelido de Platão, termo grego que significa “de ombros largos”. Foi discípulo de Sócrates, a quem considerava “o mais sábio e o mais justo dos homens”. Depois da morte de seu mestre, empreendeu inúmeras viagens, por várias regiões.
Ao retornar a Atenas, por volta de 387 a.C., Platão fundou sua própria escola filosófica, chamada Academia, por localizar-se no jardim do herói grego Academos. Na Academia ensinava matemática, ginástica e filosofia. Ele valorizava muito a matemática, por ela exercitar nossa capacidade de raciocinar sobre o que não é percebido pelos sentidos.
Na visão socrática, a vida humana só tem sentido se referida a um princípio interior ou a uma interioridade presente em cada homem, que ele designou com o termo alma (psique). Nessa dinâmica, a antropologia socrática nos traz, inicialmente, a clara noção da primazia da faculdade mental, uma vez que é a nossa identidade e a nossa diferença. A conhecida expressão zoón logikón (animal racional) encontra aqui a sua fonte.
Dessa forma, sendo essa a nossa identidade radical, ser homem é viver em conformidade com as orientações da alma. Na busca de conceituação, a resposta de Sócrates é precisa: "O homem é a sua alma", uma vez que é a alma que o distingue de tudo o mais. E por "alma" Sócrates entende a nossa razão e a sede de nossa atividade pensante e eticamente operante. Em síntese: para Sócrates, a alma é o eu consciente, ou seja, a consciência e a personalidade intelectual e moral.
Com essa ênfase no que identifica o que é humano, o pensamento socrático-platônico estará voltado para o tema da educação da alma, que possibilitará ao homem aprender a controlar as paixões e os impulsos vinculados à dimensão sensível.
Platão desenvolve uma teoria conhecida como “metempsicose”. Nessa teoria, aborda-se a transmigração das almas em vários corpos. Platão fala, portanto, em renascimento da alma ou reencarnações. A tese da metempsicose é um exemplo de dualismo, pois as formas puras e eternas, que incluiriam a alma, seriam um domínio totalmente separado do mundo material. Essa teoria, em diferentes visões, pode ser vista no diálogo Fédon e na obra A República. Nessa visão platônica, “estar no corpo” representa para a alma, de certa forma, uma prisão, um cárcere. A purificação da alma acontece à medida que ela consegue transcender o corpo, os sentidos, os prazeres, conquistando novamente o mundo Inteligível, espiritual, realidade que lhe é conatural. A vida humana é uma peregrinação para o estágio final. Através da reminiscência (recordação) e por meio da purificação (kátarsis), a alma se volta para o seu ideal. Na medida em que o conhecimento nos possibilita a passagem de um nível para outro, do sensível para o supra-sensível, ele também nos conduz da aparência para a essência, da falsa dimensão para a autêntica e ideal dimensão do ser. Portanto, é por meio do conhecimento que a alma cura a si própria, purifica-se, converte-se, eleva-se e realiza-se. Nesse caminho de superação encontramos a virtude.

ALEGORIA DO COCHEIRO: o governo da alma racional.

No Livro IV de A República, Platão apresenta sua visão de alma tripartida, isto é, divida em três partes. A primeira dimensão, a mais inferior, seria a do corpo, da alma apetitiva ou concupiscível. Essa seria a dimensão irracional, impulsiva, situada na parte inferior, próxima à cicatriz umbilical, ligada aos sentidos. O segundo elemento constitutivo seria a alma irascível, das vontade, impetuosa, responsável pela defesa contra as agressões. Nesse nível estaria a ira, a cólera, situada na região do peito, do coração. Portanto, também seria mortal, e teria por objetivo justamente lutar contra as ameaças de morte ao corpo. O terceiro elemento, verdadeiramente distintivo do ser humano, seria a alma racional. A mente seria o princípio divino que em nós habita; por isso, representaria a dimensão imortal. É a partir dessa dimensão que se tornaria possível o acesso às ideias, ao conhecimento do bem, do belo, da verdade, da justiça.
Cada alma seria regida por uma virtude própria e que deveria ser conquistada. A alma apetitiva ou concupiscível deveria alcançar a virtude da moderação (sophrosyne), a alma irascível ou impetuosa necessitaria conquistar a virtude da coragem (andreia) e a alma racional deveria conquistar a virtude da sabedoria (sophia), resultante do conhecimento (theoría). Pensar em justiça e em felicidade implicaria pensar no equilíbrio dessas funções em nós.
Assim, o elemento racional deveria agir sobre o elemento irascível, proporcionando-lhe a virtude da coragem que, por sua vez, deveria agir sobre o elemento irracional concupiscível e passional, proporcionando-lhe a moderação ou a temperança. Nesse equilíbrio consistiria a justiça, decorrente do verdadeiro conhecimento.

A parte mais nobre deveria governar e a alma irascível deveria ser aliada do governo racional. Conforme reflexão de Platão:

“Portanto, não compete à razão mandar, por ser sábia e possuir a responsabilidade de velar pela alma, e à cólera obedecer à e defendê-la? [...] E estas duas partes assim educadas, realmente adestradas e instruídas para desempenhar o seu papel, dominarão e conterão o elemento concupiscível, que ocupa o maior espaço na alma e que, por natureza, é insaciável; Irão vigiá-lo para evitar que, saciando-se dos prazeres do corpo, de desenvolva, revigore e, em vez de se ocupar de sua tarefa, busque subjugá-los e dominá-los – o que não convém a um elemento da sua espécie – e subverta toda a vida da alma” (PLATÃO, A República. Livro VI. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p.143)

Essa classificação da alma em três elementos, Platão descreve de maneira genial através da alegoria do cocheiro, no diálogo Fedro. Considerando que as nossas paixões tendem aos extremos, a superação dos nossos impulsos e das sensações constitui um árduo caminho.
Na alegoria do cocheiro, há uma carruagem conduzida por um cocheiro e puxada por dois cavalos, um deles é bom e dócil e outro é furioso e indisciplinado. A alma racional seria o condutor, que deveria conquistar a sabedoria; o cavalo obediente corresponderia à alma irascível, que representaria a vontade e a luta contra as ameaças; o cavalo rebelde, por sua vez representaria a alma apetitiva, ligada aos sentidos. Tanto o condutor como o bom cavalo sofrem muito e precisam de muito esforço para controlar o rebelde, permitindo, assim, a atuação conjunta. Para chegar ao conhecimento, portanto, seria preciso que a razão conduzisse a vontade e os sentidos em busca do que há de mais nobre: a contemplação da verdadeira realidade: o Bem supremo.
Nessa alegoria, verifica-se a tripartição da alma. Na parte racional, representada pelo comando do cocheiro, encontra-se a referência humana fundamental, o guia da alma. O bom cavalo representaria a parte da força, da cólera contra a injustiça, da coragem de lutar pela justiça e defender o corpo contra toda ameaça à vida. E o cavalo da indisciplinado representaria a parte inferior, rebelde e inquieta, das paixões cegas.
Podemos também relacionar a tripartição da alma com a reflexão de Platão sobre as diferentes almas: de bronze, de prata e de ouro. Ele aplicou essa analogia aos diferentes grupos da sociedade grega, com o podemos ver no fragmento a seguir, retirado do livro III de A República, de sua autoria. Nesse fragmento, Sócrates se dirige a Glauco dizendo:
"[...] mas ouve o resto da fabula: “Na cidade sois todos irmãos”, dir-lhe-emos, prosseguindo nessa ficção, “mas o deus que vos formou misturou ouro na composição daqueles que entre vós são capazes de comandar: por isso, são os mais preciosos. Misturou prata na composição dos auxiliares; ferro e bronze na dos lavradores e na dos outros artesãos. Em geral, procriareis filhos semelhantes a vós; mas, visto que sois todos parentes, pode suceder que do ouro nasça um rebento de prata, da prata um rebento de ouro e que as mesmas transmutações se produzam entre os outros metais. Por isso, acima de tudo e principalmente, o deus ordena aos magistrados que zelem atentamente pelas crianças, que atentam no metal que se encontra misturado à sua alma [...]” (PLATÃO. A República. Livro III. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 111)

Celito Meier

8.2. ARISTÓTELES E A POLÍTICA

A dimensão política humana: a cidade e o cidadão.

Aristóteles define o ser humano, inicialmente, como um ser composto de psiquê e de soma, de corpo e alma. De uma estrutura biopsíquica. Nessa visão, o desenvolvimento da racionalidade interfere diretamente sobre a vida da materialidade corporal.
Ao conceber o homem como zoón logikon,afirma a racionalidade como elemento que distingue a alma humana de todos os outros seres da natureza.
Em segundo lugar, Aristóteles destaca a dimensão política como estruturante da personalidade. Metaforicamente, todo membro existe em um corpo e somente vinculado ao corpo consegue realizar-se. Dessa forma, o indivíduo é o membro, a polis é o corpo. Assim como no corpo há muitos membros e cada um com funções específicas, da mesma forma, para a harmonia da cidade, cada cidadão tem suas funções. Dessa forma, a felicidade do indivíduo participa da felicidade da polis.

Em seu livro A política, Aristóteles escreve sobre a natureza política da alma humana. Vejamos alguns fragmentos desse escrito.

“O homem é, por sua natureza, como dissemos desde o começo, ao falarmos do governo doméstico e do dos escravos, um animal feito para a sociedade civil. Assim, mesmo que não tivéssemos necessidade uns dos outros, não deixaríamos de desejar viver juntos. Na verdade, o interesse comum também nos une, pois cada um aí encontra meios de viver melhor. Eis, portanto, o nosso fim principal, comum a todos e a cada um em particular. Reunimo-nos mesmo que seja só para pôr a vida em segurança. [...]. Mas não apenas para viver juntos, mas, sim, para bem viver juntos que se fez o Estado”.

ARISTÓTELES. A política. livro II. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.53

Assim, em Aristóteles, a reflexão política vem indissociável da ética. Enquanto a ética é o estudo da conduta e do fim do homem como indivíduo, a política é o estudo da conduta e do fim do homem como parte de uma sociedade.

A vida individual só se compreende referindo-se à vida comunitária. Assim, o bem do indivíduo é da mesma natureza que o bem da pólis, mas o bem da cidade é mais belo e mais divino, porque se amplia da dimensão do privado para a dimensão do social, para a qual o homem grego era particularmente sensível, porquanto concebia o indivíduo em função da cidade e não a cidade-estado em função do indivíduo.

Celito Meier